Uma economia de dependência. Quando o presidente sportinguista Bruno de Carvalho diz que os fundos agem no futebol com a mesma lógica de quem vende droga, descreve com palavras extremas uma situação real. E, nesta situação, encontramos os clubes de futebol presos a uma crise economico-financeira, muitas vezes próximos de um estado terminal, incapazes de reaver o seu próprio destino e emprestar-se uma política sã.
Assim, os clubes preferem forjar novas ligações de escravidão com atores financeiros de origem espúria e de proveniência duvidosa, portadores de uma ideia de capitalismo longe de qualquer senso de responsabilidade social. Neste plano, como sempre, Portugal é uma terra de fronteiras.
O que algures se faz pela calada aqui faz-se à luz do sol e aparece noticiado pela comunicação social como se fosse uma coisa normal. Poucos encontram algo para se rir em operações de mercado como aquela que, há seis meses, fez Pablo Daniel Osvaldo fazer a viagem de ida e volta desde o Boca Juniors para o FC Porto; a omnipresença da Doyen Sports Investments; ou o poder esmagador de Jorge Mendes. É tudo uma mistura de ultra-modernidade económica e feudalismo, na construção de um novo sistema de poder. Brokers da alta finança e “jagunços” da latifúndio, lado a lado, para formar um “tudo em um”.
A pagar por tudo isto está o futebol e os sentimentos de quem o ama. Ambos transformados em terreno de caça grossa e em “asset” financeiro de troca. Muitos não têm noção do perigo e acreditam que os contornos desta 'Nova Economia' não sejam assim tão diferentes de tantos outros que, no curso das diversas épocas, governaram o futebol no plano económico. A todo o custo, é preciso fazer entender que não é assim, e que os assuntos da economia paralela já imprimiram uma perigosa mutação genética ao futebol, para além de alimentar uma 'bolha' especulativa que, mais cedo ou mais tarde, vai explodir com efeitos devastadores.
O futebol global está a viver os dias que precedem uma crise do 'subprime' e Portugal é um dos centros de irradiação do vírus. Por esta razão, é bom que os leitores estejam informados sobre algumas coisas, relativamente ao modo como os atores da economia paralela do futebol global agem e as consequências para o mundo do futebol.
1) O futebol transforma-se numa incubadora financeira: Os investidores que injetam dinheiro no futebol comprando os direitos económicos sobre os jogadores (ou seja, o direito de lucrar com a sua futura venda), não o fazem para contribuir para a sorte dos clubes, nem para melhorar o desenvolvimento do movimento futebolístico, nem para produzir valor social. O seu objetivo é a produção de dinheiro por meio de dinheiro, para depois trazer, fora do futebol, o acrescido valor. O futebol torna-se um meio de troca, nada mais. Neste sentido, é preciso também acrescentar umas palavras sobre a diferença entre Third Party Ownership (TPO) e Third Party Investments (TPI). Uma diferença que os fundos de investimento procuram fazer sobressair, dizendo que eles fazem TPI e não TPO, e que, portanto, são somente investidores e não proprietários. Na realidade, a diferença, do ponto de vista do destino do dinheiro produzido pela venda de jogadores, não existe: quer se trate de TPO ou de TPI, uma parte maior ou menor desse valor económico vem subtraída ao mundo do futebol.
2) Perda de soberania dos clubes: para os clubes que mantenham relações de TPO ou TPI com os fundos, as margens de manobra tornam-se, pouco a pouco, mais apertadas. O investidor tem interesse que jogue o jogador no qual investiu, porque de outro modo não é valorizado, nem o jogador nem o dinheiro que nele foi investido. E, uma vez que o jogador esteja valorizado o suficiente, deverá ser cedido: porque só através da cedência o investidor poderá ter lucro. Um jogador que esteja muito tempo parado num clube é, para o fundo, um investimento morto. Portanto, o clube tem sempre menos liberdade de deixar a escolha aos treinadores de quem pôr a jogar e, também, de decidir se cede, ou não, e quando, tal jogador.
3) Dano à livre concorrência e à integridade do jogo: Se um jogador é protegido pelos interesses de um investidor, terá oportunidades de trabalho que talvez não tenham outros jogadores, sendo que estes podiam ser muito mais merecedores, mas não estão protegidos pelos interesses de um investidor. O mesmo vale para os treinadores, que cada vez mais estão na órbita dos investidores ou dos agentes oligopolistas: ocupam lugares de trabalho que poderiam ser ocupados por colegas mais preparados e, desta posição, fazem jogar jogadores relacionados com esse mesmo fundo ou afiliados ao mesmo agente oligopolista. Em condições semelhantes, é talvez exagerado falar de uma grave ameaça à livre concorrência do mercado de trabalho?
4) Cartelização: Trata-se do aspeto mais grave. A especulação dos direitos económicos dos jogadores implica que esses sejam transformados em “asset”, fracionados e vendidos separadamente (às vezes sem o seu conhecimento) para depois especular sobre o seu futuro valor. O que é efetuado é uma operação de titularização. Mas, neste caso, o objecto de operação não é um apartamento ou um terreno agrícola, ou um pack de valores accionários: neste caso, tratam-se de pessoas. Especular sobre os direitos económicos dos jogadores significa titularizar seres humanos. E isto é simplesmente desprezível. É o contrário de cada sentido elementar da dignidade humana.
Tudo o que foi dito até aqui pode dar a entender o quão preocupante é a situação.
Mas, infelizmente, o escasso conhecimento do problema torna dificil abordá-lo. É graças a este vazio de consciência que prosperam assuntos como Doyen Sport Investments, apenas citando um. A Doyen opera quer seja trabalhando os direitos económicos, quer seja emprestando dinheiro ao clube. A recente vitória no TAS, no processo contra o Sporting Clube de Portugal, relativamente à controversa cedência de Marcos Rojo ao Manchester United, assinalou um ponto a seu favor.
Mas foi só uma batalha e, felizmente, a guerra ainda é longa. Porém, é preciso perguntarmo-nos se o TAS é o espaço judicial mais adequado para resolver certas controvérsias. Porque é que a Doyen não se dirige a um tribunal civil quando tem de resolver estes conflitos? E porque é que tem tanto medo dos documentos publicados no site Football Leaks?
Seria bom que a estas perguntas respondesse o CEO do Doyen Sports Investments, Nélio Lucas. O mesmo que, na época 2003-04, participou numa desastrosa experiência com o Beira-mar como representante do Stellar Group. E que, no verão de 2005, entrou no caso da transferência falhada de Salomon Kalou do Feyenoord para o Benfica. Foi uma história grotesca, no meio da qual é assinado um contrato mas não se consegue perceber quem o assinou em nome do Feyenoord. E quando perguntaram a Nélio Lucas quem assinou, este respondeu: “Um homem alto e calvo”.
Uma personagem assim traça o esboço de um grande homem da finança futebolística. Assim vai o mundo do futebol no tempo da sua desenfreada financeirização.
*Artigo de Opinião de Pippo Russo, conceituado jornalista italiano.