‘Abjeção’ é o título do artigo que, este domingo, o ensaísta e escritor Vasco Pulido Valente assina, como habitualmente, no jornal Público e no qual comenta o sorteio ‘Fatura da Sorte’, que o Governo tem em preparação como forma de combate à economia paralela e incentivo à responsabilidade fiscal dos contribuintes.
“Nunca pensei em ser polícia. Agora, o Governo quer fazer de mim um polícia (ainda por cima à paisana) e também um denunciante”, afirma Vasco Pulido Valente, esclarecendo que em causa está o prémio concedido pelo Executivo ao “’bom cidadão’”.
“Quem pedir fatura a quem lhe vende um café, um bife ou um casaco chega ao fim do ano com um molho de bilhetes de lotaria para o sorteio de um carro ‘topo de gama’, que o Governo oferece ao ‘bom cidadão’”, descreve, sublinhando que “isto permite ao Ministério das Finanças comparar o volume de negócios declarado de qualquer restaurante ou de qualquer loja com a documentação que lhe entregou a classe média”.
Uma “classe média” que vai “à procura de um Audi ou de um Mercedes, que a faça brilhar na vizinhança e espicace a sempre viva inveja da família e amigos”.
“O Estado transforma assim, com habilidade e subtileza, os portugueses numa corporação de espionagem encarregada de se espiar a si mesma, sem gastar mais do que um carro apreendido a um criminoso ou contrabandista”, escreve.
Ao mesmo tempo, “vivendo perto da falência, o comércio e a restauração tendem a subtrair uma fatura ou outra à tosquia fiscal a que estão submetidos”.
Vasco Pulido Valente destaca que em “Espanha acha que o estratagema é ‘pitoresco’”, ele defende que classifica a ideia de “tenebrosa: vexatória, indigna, irresponsável, excessivamente parecida com episódios conhecidos da Ditadura e dos regimes que ela imitava e venerava”.
Por tudo isto, conclui: "A sociedade portuguesa avançou um novo passo para a abjeção".