“Ontem, o meu pai foi-se embora. Não vem e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país”.
É desta forma que começa o texto ‘Uma carta ao pai’ que, esta quarta-feira, o escritor João Tordo publica no seu blogue e no qual descreve como se sentiu ao ver o pai, o músico Fernando Tordo, “um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida”, partir “com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país”.
“Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais”, confessa o escritor, sugerindo que “talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência”; e “feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar”.
Sublinhando que “tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém”, João Tordo afirma que “quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo” e, ainda assim, “se limitou a anunciar a [partida] no Facebook”.
Mas se “muita gente se despediu com palavras de encorajamento (…) outros, contudo, mandaram-no para Cuba (…) ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, (…) e perguntaram o que iria fazer: limpar WC's e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um ‘tacho’ proporcionado pelos ‘amiguinhos’?”.
“Eu entendo o desamor. O que eu não entendo é o ódio”, confessa o escritor, reiterando que “quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal” e “partiu, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC's e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha”.
João Tordo encerra o texto sublinhando que “os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, (…) a segunda a felicidade, a terceira, a esperança, e a quarta (…) o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país”.