Os efeitos secundários do 'medicamento' chamado troika

Três anos depois, o que mudou no Serviço Nacional de Saúde? O que podemos esperar a partir de 17 de maio, quando a troika arrumar a trouxa e partir? Das taxas moderadoras às Unidades de Saúde Familiar (USF), passando pelos medicamentos, veja onde os efeitos da troika se fizeram sentir.

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Daniela Costa Teixeira, Mariana Ferreira Delgado e Pedro Pina
14/05/2014 14:00 ‧ 14/05/2014 por Daniela Costa Teixeira, Mariana Ferreira Delgado e Pedro Pina

País

Balanço

Falar em Estado Social é falar no Serviço Nacional de Saúde (SNS). O acesso generalizado aos cuidados de saúde foi talvez a mais consensual das questões no Portugal pós-25 de Abril, da esquerda à direita. Em 2010 a despesa portuguesa representava mais de 10% do PIB. Quando a troika aterrou, era claro que o SNS iria ser afetado. O apelo era ao de um esforço coletivo: cortar para o tornar sustentável. O memorando de entendimento original tinha um valor a dar o mote para o que viria: 550 milhões de euros em cortes. Vejamos o que se passou quando se foi ‘além da troika’.

As taxas moderadoras foram das primeiras medidas sentidas: houve um aumento de 2,25 para 5 euros e de 9,60 para 20 euros do custo de uma consulta no centro de saúde e de uma ida à urgência do hospital, respetivamente. Ao mesmo tempo, "procurou compensar o aumento das taxas moderadoras com o aumento das isenções por motivo de rendimento", como recorda ao Notícias Ao Minuto o economista Pedro Pita Barros. Estávamos, ainda, em 2011, quando as medidas foram anunciadas. António Arnaut – ‘pai’ do SNS – foi dos primeiros a criticar estes aumentos. Mas a moderação da procura era um dos objetivos. Do ponto de vista prático, o aumento não parece substancial, particularmente numa altura em que o discurso político apelava a um esforço coletivo. Os aumentos durante o período de vigência da troika preveniram a utilização repetida. O difícil é saber discriminar os possíveis casos graves.

O risco que se corre ao evitar uma consulta ou um tratamento numa altura em que ainda é possível adiar, é o de os custos – de saúde e económicos – poderem vir a ser maiores quando for inevitável recorrer ao SNS. Apesar do relativo consenso que havia, então, sobre a necessidade de cortes no aparelho do Estado, na saúde seria política e socialmente mais difícil gerir os cortes nas chamadas ‘gorduras’. Passos Coelho escolheu o antigo Diretor-Geral dos Impostos e ex-administrador da Medis, Paulo Macedo, para o lugar. Ao ministro coube a tarefa de aplicar dezenas de medidas acordadas. Cumpriu em boa parte – com a troika a rever a matéria. Mas a boa nota no papel não chegou sem consequências no terreno.

Os sintomas no terreno

O pagamento de dívidas dos hospitais foi um dos assuntos que ocupou o Governo desde cedo. Entre 2011 e 2013 terão sido saldados quase dois mil milhões de euros em dívidas acumuladas dos hospitais à indústria farmacêutica. Em março deste ano, no entanto, as dívidas dos hospitais às farmacêuticas voltaram a ultrapassar os mil milhões de euros. Mas a queda dos preços nos medicamentos, forçada também pela aposta nos genéricos, trouxe poupanças – no final de 2013 a quota chegou aos 45% exigidos. A troika espera agora que no final de 2014 os genéricos já atinjam os 60% da quota de mercado.

Houve relatos pontuais de medicamentos em atraso. Fecharam farmácias quando poucos anos antes um simples trespasse poderia chegar às centenas de milhares de euros. Em 2012, um farmacêutico de Guimarães enviou mesmo uma prova à troika das dificuldades sentidas: um medicamento para o colesterol mais barato do que uma pastilha. Mas mais difíceis de contabilizar são os casos, do outro lado do balcão, em que a crise obrigou a escolher entre um medicamento ou outro, porque o dinheiro não dava para mais. Houve, ainda assim, casos em que as vendas de medicamentos subiram.

À Antena 1, Álvaro de Carvalho, coordenador do Programa Nacional de Saúde Mental, alertava para a prevalência “significativamente alta” da depressão em Portugal, com o consequente aumento de antidepressivos – além de ansiolíticos. Não há dados concretos para os ‘anos-troika’ mas a tendência negativa dos anos anteriores acentuou-se. Em 2013, os psicólogos do INEM receberam um número recorde de pedidos de ajuda. E os números também contam as suas histórias: uma em cada quatro vezes em que um psicólogo do INEM atuou no terreno foi para travar tentativas de suicídio. Dos números às pessoas havia uma distância de incerteza. E profissionais e utentes sentiram as mudanças.

Uma questão de distâncias

Um relatório recente, com dados de 2013, apresentado no 6.º encontro das Unidades de Saúde Familiares (USF), apontava para melhores resultados nas USF, comparativamente com os centros de saúde. No relatório destacava-se o acesso, a vigilância materno-infantil, o acompanhamento de doenças crónicas e até a prevenção oncológica como áreas de melhor resposta. As melhorias ao nível da organização e a aposta na autonomia e multidisciplinariedade são trunfos para as USF. Mas o risco aqui é o de se acentuar outra tendência negativa. Uma que já vem de há décadas e que vai além da saúde: esquecer o interior em detrimento das áreas urbanas, habitualmente concentradas no litoral do país.

A concentração de recursos trouxe maior distância entre utentes e SNS. Uns viram o centro de saúde mais perto de casa fechar. Outros passaram a ter de pagar transportes que antes eram gratuitos. Algumas autarquias chegaram mesmo a assumir despesas de transporte de quem precisava de chegar às grandes cidades. Mas a vida também mudou para os profissionais de saúde.

Durante anos esta foi uma área com empregabilidade. Mas esse cenário alterou-se em relativamente pouco tempo e em diversas especialidades. Cursos com saída para o mercado tornaram-se cursos com saída para o estrangeiro. Cláudia Dias é enfermeira em Londres desde 2012 e, embora não tenha sido ‘forçada’ a partir, confessa que o desejo de eventualmente voltar, no futuro, choca com as perspetivas atuais.

Sobre a sua experiência no serviço nacional de saúde britânico, conta-nos que o trabalho é particularmente “monitorizado”, há uma “grande aposta na formação dos profissionais” e que é notório o “maior rácio de enfermeiros por doentes”. Rácio que Portugal tem ‘ajudado’ a preencher, ao mesmo tempo que cresce a falta de profissionais nalgumas áreas. “A formação de um enfermeiro em Portugal é muito valorizada em vários países da Europa e há várias empresas de recrutamento que vêm a Portugal de propósito para contratar enfermeiros”, explica a enfermeira.

O SNS de 2014 é mais pequeno do que o de 2011. Mas continua em “falência técnica”, como alertava em entrevista à TVI António Ferreira, presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar de São João e autor de 'Reforma do Sistema de Saúde - A minha visão', lançado recentemente.

António Ferreira ganhou relevo mediático em dezembro de 2012 quando chamou a atenção para o facto de  ter 30 cirurgiões no seu hospital que nunca tinham ido ao bloco operatório. Hoje em dia, realça que o SNS só será sustentável financiando-o ou reformando-o. Uma posição partilhada por Pedro Pita Barros, que considera que a prioridade na reforma é "gerar poupanças".

O financiamento parece palavra difícil de pronunciar, na Europa da austeridade. E independentemente do possível consenso na necessidade de reformas, há algo que continua uma incógnita: que reformas.

Numa altura em que a população europeia – e em particular a portuguesa – está mais envelhecida, a aposta na prevenção é um debate em aberto. O aumento da esperança média de vida é uma conquista civilizacional que tem custos inevitáveis: somos naturalmente mais saudáveis quando novos. Mas para o SNS, os 35 anos de vida que atingiu este ano são já de risco. Que saúde terá quando chegar à terceira idade?

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