"Ainda não há motivos para descansarmos. Oxalá abril passe depressa"

Adalberto Campos Fernandes, o ministro da Saúde que esteve em funções entre 2015 e 2018, é o entrevistado de hoje do Vozes ao Minuto.

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Melissa Lopes
09/04/2020 09:00 ‧ 09/04/2020 por Melissa Lopes

Política

Adalberto Campos Fernandes

Ocupou o cargo de ministro da Saúde nos anos 'pós-troika', no primeiro governo de António Costa. Desse tempo, diz em entrevista ao Notícias ao Minuto, guarda "boas recordações", apesar de ter sido um período "duro". Menos de dois anos depois da sua saída do Executivo, e da consequente entrada em jogo de Marta Temido, o país enfrenta aquele que é, segundo o próprio primeiro-ministro, "seguramente o momento mais difícil": a pandemia causada pelo novo coronavírus

Como especialista em saúde pública  e sem qualquer saudosismo face à pasta que carregou, garante, Adalberto Campos Fernandes acompanha o desenrolar dos acontecimentos com particular interesse.

Não acredita que haja fundamento científico para se concluir que o pico da pandemia pode já ter passado, avisa que analisar a curva epidemiológica de modo exaustivo diariamente pode ser perigoso, defendendo que só no final de abril poderão ser feitas apreciações com validade. Até lá, ao comentar as variações diárias estaremos apenas a olhar para frames ou fotografias de um filme que ainda levará o seu tempo a ficar pronto. Por isso, o ex-ministro alerta que não podemos ainda descansar. Não em relação à população em geral e muito menos em relação aos mais velhos.

Sobre os idosos, Adalberto Campos Fernandes realça que "esta crise também mostra como as sociedades foram esquecendo os mais velhos" e que "temos de olhar para este grupo populacional de uma maneira diferente e não como um grupo de cidadãos que é descartável em situações sejam quais forem". 

O ex-governante tece ainda elogios ao Governo, oposição e Presidente da República, por estarem a responder à crise de forma unida nesta fase "terrível" e de "incerteza", e espera que no futuro "haja grande investimento no Serviço Nacional de Saúde". Não apenas em ventiladores, mas em tudo o resto. Porque a saúde "não é um custo", é um investimento social, frisa, lembrando aquilo que sempre se soube mas que agora poderá estar mais nítido aos nossos olhos: "A saúde é uma pré-condição para que as sociedades estejam pacificadas, para que haja paz, desenvolvimento e trabalho". E deve ser essa a prioridade de todos os governos. 

No recomeçar progressivo da vida social e profissional, o uso generalizado da máscara deve ser um elemento em cima da mesa, defende também.

A nossa curva, desde o primeiro caso e até desde a primeira morte, mas sobretudo naquilo que se refere aos casos novos de infeção, é muito atalhada. Tem uma tendência, mas muitas oscilações. É preciso que a maturidade no tempo seja alcançada até para não desmobilizar do ponto de vista cívico

Partilha da visão de alguns especialistas sobre o facto de o pico da epidemia em Portugal já ter acontecido? 

Não é por uma questão apenas de cautela ou de prudência, é por uma questão de alinhamento com a realidade dos factos: Sabemos bem que em estatística, mas sobretudo em epidemiologia, precisamos de séries mais longas e de maior densidade dos dados. Não conhecemos em detalhe os modelos que têm sido evocados pela DGS - o que aliás é pena, a comunidade científica beneficiaria toda com isso. Não tenho a certeza, não arriscaria porque não me parece que exista um fundamento científico rigoroso que possa levar a essa conclusão.

Qual a sua interpretação da curva epidemiológica?

Analisar os números diariamente, da maneira que é feito, à exaustão, na comunicação social, em que se comenta que variou 1% para baixo, 1% para cima, que foi o dia melhor ou o dia pior, é perigoso do ponto de vista da perceção pública. A nossa curva, desde o primeiro caso e até desde a primeira morte, mas sobretudo naquilo que se refere aos casos novos de infeção, é muito atalhada. Tem uma tendência, mas muitas oscilações. É preciso que a maturidade no tempo seja alcançada até para não desmobilizar do ponto de vista cívico.

O descanso não pode ser nenhum com esta população que está a viver em lares, em residências e em unidades de cuidados continuados É ainda muito cedo para estarmos a falar da possibilidade do pico já ter sido ultrapassado, é isso?

Creio que sim. Conclusões ou apreciações preliminares terão alguma validade na última semana de abril. Aí teremos claramente uma tendência definida. Não sei exatamente se aquele território de alta vulnerabilidade, que são os idosos que estão institucionalizados – cerca de 100 mil -  seja uma zona onde já tenhamos criado todas as condições para evitar uma propagação continuada da infeção.

Esse parece ser um processo ainda em andamento …

Não sei. De qualquer das maneiras, o que me parece, pelo que é do conhecimento público, é que ainda não há motivos para descansarmos em relação à comunidade em geral, mas muito em particular, em  relação os idosos. O descanso não pode ser nenhum com esta população que está a viver em lares, em residências e em unidades de cuidados continuados.

Fomos tomando as medidas na sua esmagadora maioria no tempo certo, houve uma outra que podia ter sido mais cedo, mas condições são as que sãoJá se começa a antecipar um eventual segundo surto no próximo inverno. Nessa altura não estará ainda disponível a vacina. É possível que tenhamos de tomar as mesmas medidas de isolamento social e de confinamento que tomámos agora? Ou serão medidas mais brandas? De que forma podemos aliviar as medidas de contenção?

Aquilo que parece que é mais sensato é que nós tenhamos muita atenção, tenhamos muito em conta a evidência científica que vai saindo, que ainda é relativamente frágil. Se fizer uma pesquisa bibliográfica sobre os mais recentes papers publicados, mesmo em revistas científicas de primeira linha, vemos uma grande instabilidade no conhecimento que está a ser produzido. Questões tão simples como se o vírus tem a possibilidade de se manter em reservatórios e voltar a contaminar; saber se o vírus tem apenas uma estirpe ou se já há várias; etc. Há aqui muita coisa que estamos a aprender cada dia que passa.

Dito isto, o mais importante é que não nos desliguemos daquilo que é a realidade prática que está a ser trazida, felizmente para nós que estamos mais atrasados no processo, pelos países que nos precederam. [Devemos] olhar para aqueles países que já estão em phasing out. Um caso interessante é o caso da Áustria. Mas também o Japão, a China, Coreia do Sul e Hong Kong. Tendo em conta que as especificidades sociais e demográficas são diferentes (população, hábitos, cultura e etc), há muita coisa que eles fizeram quer na fase de resposta ao surto quer depois na fase pós-crise nomeadamente na recolocação da vida social e económica.

Que bons exemplos podemos então tirar do caso europeu que mencionou?

A Áustria está a ser um caso muito interessante. Países como a Holanda, Suécia, Reino Unido, que tiveram hesitações iniciais argumentando que se resolveria tudo com a imunidade de grupo, depois foram correr atrás do prejuízo. Nós estivemos, nesse aspeto, bem. Fomos tomando as medidas na sua esmagadora maioria no tempo certo, houve uma outra que podia ter sido mais cedo, mas as condições são as que são. E agora há que preparar o regresso à atividade, porque o país não pode, do ponto de vista económico, morrer e afundar-se.

Vendo o que os outros países estão a fazer, temos de preparar a maneira como vamos progressivamente devolvendo as pessoas à comunidade, sendo certo que, neste momento, esta é uma matéria que não está ainda em cima da mesa. Quando chegarmos ao final de abril, a Áustria terá já, provavelmente, 15 dias/três semanas de implementação no terreno de algumas experiências. Por exemplo, aqui incontornavelmente o uso da máscara vai ser um assunto que ainda vai ganhar mais atualidade

Em vez de dizer que dão uma falsa sensação de segurança, é preferível fazer uma campanha a explicar às pessoas como é que se utilizam as máscaras corretamente

Qual a sua posição sobre o uso da máscara? A Ordem doas Médicos defende o uso generalizado, a Organização Mundial e Saúde (OMS) e a Direção-Geral de Saúde (DGS) têm vindo a desaconselhar dizendo que cria uma “falsa sensação de segurança”.

Nunca acompanhei e não acompanho essa resistência porque me pareceu sempre que há aqui dois tipos de argumento que não podemos misturar. Uma coisa é dizermos que não temos a capacidade de produzir máscaras para a população toda. É um dado importante e um problema logístico mas não é um problema de saúde pública. Outra questão é dizer que o benefício que se retira da utilização da máscara não é superior à sua não utilização, sobretudo em populações que, não sendo até profissionais de saúde, estão expostas a maior risco, nomeadamente cuidadores, pessoas que trabalham com idosos ou pessoas vulneráveis, profissionais que fazem serviço público e que andam na rua, e, por exemplo, os funcionários das cadeias de distribuição, os supermercados, as farmácias.

É óbvio que a utilização de máscaras deu resultado nos países que aplicaram essa medida, ninguém pode desmentir isso. É também óbvio que nem toda a gente saberá usar as máscaras. Mas, em vez de dizer que dão uma falsa sensação de segurança, é preferível fazer uma campanha a explicar às pessoas como é que se utilizam as máscaras corretamente.

E, finalmente, não havendo máscaras para todos, já tínhamos tido tempo, e a sociedade civil está a mobilizar-se, criar um máscara que tenha um grau de eficácia razoável não é uma coisa extraordinariamente complexa. Temos muitas empresas que estão a orientar-se neste aspeto. A máscara constitui uma barreira física à transmissão que protege a difusão da infeção na comunidade e, sobretudo, não havendo para todos maciçamente, têm que se proteger as pessoas que têm relações com o público. 

Basicamente, todos aqueles que lidam com público devem, sem sombra de dúvida, usar máscara?

Claro. No caso dos cuidadores informais, trabalhadores dos lares e residências, muitas vezes trabalham em mais do que uma instituição, o risco de contágio é muito grande. E é um risco para eles próprios que cuidam mas também para as pessoas instituições.

Notícias ao MinutoAntecessor de Marta Temido pede cuidado na interpretação diária dos dados da epidemia© Global Imagens

Considera então que a DGS devia ter procedido de outra forma, ao invés de desaconselhar o uso da máscara dizendo que dão falsa sensação de segurança, sem acentuar a questão da logística… 

Não estou a fazer nenhum juízo de valor nem uma crítica à DGS. Houve aqui uma contradição porque houve um momento em que iriam pedir um parecer à comissão nacional e depois voltaram a fixar-se na orientação da OMS. É preciso ver que a OMS também erra. E que, neste aspeto, tem uma preocupação global, faz recomendações globais. Quando a OMS faz recomendações não está a fazer especificamente para Portugal, está a pensar também nos países africanos, países em desenvolvimento e mais pobres. E há dias o diretor-geral falava do risco de não haver materiais para os profissionais por causa da utilização pela população em geral.

Não sendo de facto uma matéria consensual, não podemos dizer que é preto ou branco, há uma coisa que, apesar de tudo, vem a favor da utilização da máscara. Por um lado, a experiência internacional. Nenhum dos países que tiveram bons resultados deixou de usar a máscara. E depois, o princípio da precaução da saúde pública Na dúvida, devo elevar o meu nível de decisão.

Em última análise, mais vale usar a máscara do que não usar?

Usar a máscara com critério, selecionando bem as prioridades dos grupos que as têm de usar, e que não são apenas, insisto, os profissionais de saúde. Se uma pessoa está em casa, sai pouco e tem pouca atividade perante terceiros, naturalmente que não é um alvo prioritário para a utilização da máscara.

Numa ida ao supermercado, por exemplo, aconselha a utilização da máscara?

Sim, claro, sem dúvida nenhuma. Quem é que pode garantir que numa ida ao supermercado, por muita geometria que se faça na distância, não há em alguma circunstância uma interação com alguém que está transmissor? Ou o contacto com uma superfície contaminada? É impossível, as pessoas não são robots. O distanciamento ajuda, é uma regra, mas há corredores onde as pessoas eventualmente se cruzam. Acho que quando iniciarmos o processo de reentrada social a máscara deve estar em cima da mesa como um dos elementos do processo de recuperação da atividade profissional e social.

O jogo de expetativas aqui é muito sensível. A população corre o risco de, num determinado ponto, se cansar de estar em casa, com as crianças a começarem a ficar saturadas (...).  O Presidente da República esteve muito bem quando disse que até ao final de abril estamos conversados As notícias de hoje [quarta-feira, dia 8] foram boas, com o número de doentes em Unidades de Cuidados Intensivos a descer pela primeira vez. Isto quer dizer que podemos, enfim, respirar de alívio quanto à capacidade de resposta do SNS? Está afastado o cenário de colapso?

A notícia do dia é boa. Estamos todos a fazer força para que a fotografia se transforme num filme. O problema de estarmos a comentar todos os dias uma fotografia é que não temos a dinâmica do processo. Até aqui, aparentemente, estamos a andar bem, estamos a ter compensação para as medidas que nos sujeitamos e com muita disciplina. Nesse aspeto, os portugueses são um caso exemplar no contexto europeu, mas temos ainda pela frente quase todo o mês de abril. Vamos ver. Como disse o Presidente da República “é preciso não levantar o peso de cima da mola”.

O jogo de expetativas aqui é muito sensível. A população corre o risco de, num determinado ponto, se cansar de estar em casa, com as crianças a começarem a ficar saturadas. Há aqui o risco de saturação com implicações até ao nível da saúde mental. Gerar expetativas é importante, não ao dia, mas num sentido mais alargado. O Presidente da República esteve muito bem quando disse que até ao final de abril estamos conversados e acabou a conversa. Se estivermos todos os dias em cima das variações da curva e a decidir se fazemos isto ou aquilo, corremos o risco de banalizar a importância daquilo que está a ser feito. No final de abril conversamos. E até lá olhamos, não para as fotografias ou para os frames, mas para o filme que se vai gerando.

As pessoas têm feito um esforço terrível para servir o país. O próprio líder da oposição, Rui Rio, tem estado muito bem. E eu sou insuspeito por estar a fazer esta apreciaçãoJá agora, como viu as declarações do primeiro-ministro que, em entrevista à TVI, garantiu que nada faltará nos hospitais?

Fui ministro do governo do primeiro-ministro António Costa, trabalhei com ele... A questão é esta: qualquer titular de cargo político, submetido a uma pressão como é o caso dele, às vezes diz coisas que podem ser menos bem compreendidas, que podem até não cair bem em algumas pessoas. O que conta é o conjunto daquilo que está a ser feito. Estive no Governo três anos e sei bem o que é por uma frase, por um dia… O julgamento da nossa atividade não pode ser feito por um momento em que podemos dizer algo que para nós faz sentido e que não tem bom acolhimento por quem está a ouvir. Olhemos para o resto, olhemos para um país que está a ser alvo, como todos os outros, de uma violenta crise sanitária, a que se vai seguir uma violenta crise económica.

Acho que nos devemos fixar todos nos aspetos de interesse nacional, estratégicos, e deixarmos de focar aquele dia que correu menos bem ou uma situação que pode ter sido menos bem entendida. Seja com o primeiro-ministro, seja com o líder da oposição, seja com o Presidente da República. As pessoas têm feito um esforço terrível para servir o país. O próprio líder da oposição, Rui Rio, tem estado muito bem. E eu sou insuspeito por estar a fazer esta apreciação. Os partidos todos têm procurado dar as mãos, percebendo que temos uma situação de crise muito grave e que vamos ter o day after, e que nós esperamos que seja curto, mas que vai ser terrível. Nos momentos de grande dificuldade devemos fixar as grandes causas e focar muito menos nos detalhes e nos pormenores.

Notícias ao MinutoAdalberto Campos Fernandes defende o uso da máscara generalizado© Global Imagens

Esta pandemia deve ser encarada como uma oportunidade expondo ao máximo a necessidade de se investir muito mais no SNS de modo a prepará-lo melhor, de uma forma geral, para o futuro?

Não só em Portugal. Acho que esta crise está a dar uma lição ao mundo todo sobre aquilo que a OMS anda a dizer há tanto tempo: que os países devem ter sistemas de acesso geral e cobertura universal; que a saúde não é um custo, é investimento social; que não há economia sem pessoas e que não há desenvolvimento económico sem pessoas bem tratadas e com bem-estar.

Eu acredito que tão cedo os países todos, na Europa, nos EUA, vão perceber que há um pressuposto para que os Estados funcionem com segurança. Por um lado, a saúde pública é essencial. Estes dispositivos de vigilância, de prevenção e de resposta têm de ser aprofundados. Por outro, do ponto de vista da prestação de cuidados, acho que dificilmente vamos aceitar que a alguém venha dizer que é uma zona de desperdício e que é um custo insuportável. 

A lição é que a saúde tem mesmo de estar acima de tudo, de qualquer custo financeiro ...

A saúde é uma pré-condição para que as sociedades estejam pacificadas, para que haja paz, haja desenvolvimento e haja trabalho. Não há nenhum país que possa ter progresso se tiver uma população que não é cuidada. Há aqui dois aspetos que queria salientar. O primeiro é que esta crise também mostra como as sociedades foram esquecendo os mais velhos: foi-se esquecendo que estavam em condições, muitas vezes, sub-humanas e pouco dignas. O segundo aspeto é que há aqui também uma lição que tem que ver com a ética e moral social: temos que olhar para este grupo populacional de uma maneira diferente e não como um grupo de cidadãos que é descartável em situações sejam quais forem.

O tempo em que esteve como ministro da Saúde foi parco em investimento, com o Governo sobretudo concentrado na devolução dos rendimentos pós-troika …

Era um tempo diferente. Se esse esforço não tivesse sido feito, estaríamos muito pior. Portugal estava a tentar equilibrar as suas contas, a tirar a cabeça debaixo de água, a reduzir o volume de dívida, a ganhar respeito internacional e melhorar a sua situação em termos económicos. Houve um esforço enorme do Governo no seu conjunto para que Portugal pudesse chegar hoje como está a chegar, apesar de ter uma dívida pública muito elevada, a um contexto de respeito e de reconhecimento internacional. Estamos a falar de duas crises, separadas por 11 anos. Quando saímos da crise de 2008-2011, Portugal era visto como o mau aluno, como um país que não conseguia gerir a sua própria casa e que não equilibrava as suas contas. Nesta segunda crise, Portugal tem muitas das dificuldades que tinha em termos orçamentais mas melhorou muitos aspetos, deu sinal de que foi capaz fazer uma trajetória e ganhou respeito internacional.

Se a Europa não der a mão, se os países não se ajudarem nesta fase, acredito que as réplicas do Brexit vão ser fortíssimas

Que frutos pode agora Portugal colher disso?

Essa é a pergunta para um milhão de dólares. Vamos todos ver se a Europa, de facto, é um clube a duas ou três velocidades, em que não há crise que demova os egoísmos e egocentrismos do centro e norte da Europa, ou se afinal é uma união política baseada na solidariedade e na entreajuda. Os sinais têm sido muito maus, o que se passou com Itália foi impressionante do ponto de vista negativo, e agora vamos aguardar pelos próximos desenvolvimentos. Se a Europa não der a mão, se os países não se ajudarem nesta fase, acredito que as réplicas do Brexit vão ser fortíssimas.

A União Europeia corre o risco de desunião?

Corre, corre. Eu falo até por uma visão que é pessoal. Sou, desde os meus tempos de estudante, um europeísta entusiasta e, aliás, defensor de uma coisa que é politicamente pouco correta que é o federalismo europeu. Mas mesmo pessoas com o meu pensamento e a minha posição, começam a ficar cansadas de tanta incapacidade de unir. O que vemos é uma Europa burocrática e muito focada em aspetos setoriais, de natureza monetária e financeira e uma Europa muito pouco social. Se numa crise destas não se une e não desenha solidariedade, vão proliferar as correntes que em Itália já são visíveis, que em Espanha também têm muito peso e outros países começarão a perguntar: ‘Europa, para que te quero?’.

Alguns governos cairão e o troco será a emergência de mais populismo, mais forte e mais agressivo, tanto o populismo de direita ou de esquerda. É o pior cenário se nada for feito E podemos assistir ao desmoronar da UE?

Não sou tremendista nem fatalista. Acho que há laços que são muito fortes e, sobretudo, há dirigentes políticos que são pessoas que têm uma visão mais estratégica e de bom senso. Mas vamos assistir a um momento de desunião e, provavelmente, e alguma instabilidade política. Alguns governos cairão e o troco será a emergência de mais populismo, mais forte e mais agressivo, tanto o populismo de direita ou de esquerda. É o pior cenário se nada for feito.

E com tudo isso, ou antes disso tudo, é de prever novas medidas de austeridade?

Sim. Esperamos todos que não numa ótica punitiva como foi na crise anterior. Independentemente do seu caráter, a austeridade vai fazer o quê? Vai novamente abater-se sobre aqueles que há dez anos foram os primeiros a sofrer o impacto - os mais pobres, as pessoas com menos rendimento/trabalho mais precário, os jovens que vão sofrer o segundo embate. E isto é mau do ponto de vista da esperança.

São gerações perdidas.

São gerações perdidas. Portugal estava num bom momento e com um sentimento favorável. Isto é um balde de água fria, sobretudo para as gerações mais jovens que estão no início da sua vida profissional. Agora nem sequer a expetativa da emigração é uma expetativa realista. O que vemos em todo lado é jovens e menos jovens a serem despedidos. Enfim, vamos ver, vamos ser positivos, vamos tratar primeiro do vírus e depois da vida das pessoas.

Portugal, quando olhamos para os países todos na Europa, sobretudo os mais impactados, é o país que tem o sistema de saúde mais bem estruturado. Isso foi determinante

Durante o período em que ocupou o cargo (2015-1018), houve alguma antecipação/preparação para a ocorrência de uma pandemia desta dimensão?

Sim. Se os números se mantiverem nesta linha, retiramos daqui que Portugal tem um bom dispositivo de saúde pública, um bom dispositivo sanitário, apesar de fragilizado e com dificuldades e com desinvestimento crónico. Portugal, quando olhamos para os países todos na Europa, sobretudo os mais impactados, é o país que tem o sistema de saúde mais bem estruturado. Isso foi determinante. Acho que é uma lição que os sistemas de saúde dão e à política também, no seu conjunto.

Espero que no futuro haja grande investimento no SNS, não só em ventiladores

Havia alguma forma de estarmos melhor preparados?

Ninguém estava preparado. Veja-se a maior economia do mundo: os EUA estão numa situação muito difícil. Têm uma medicina muito avançada, das mais avançadas no mundo, mas não têm um sistema integrado que funcione de forma articulada. O que se está a passar nos EUA é um exemplo extremo. Veja-se o caso do Reino Unido, que tem um serviço nacional que, aliás, é inspirador do nosso e as dificuldades que têm tido.

Esses dois países desvalorizaram a pandemia no início.

Sim, sim. Tiveram uma abordagem que era errada e que vieram a reverter. Curiosamente, bons exemplos: Eu diria que Portugal, para país pequeno e pobre, é o país que compara melhor em termos de desempenho do sistema de saúde. E depois, claro, temos na Europa um exemplo de país muito rico: a Alemanha. A Alemanha e a Áustria são a ilustração daquilo que se pode fazer quando o país é rico e não tem nenhuma limitação às infraestruturas e equipamentos.

Foram também pioneiros na ideia de que era preciso “testar, testar, testar”.

Também. Mas ambos têm um bom sistema de saúde, sem carências. Basta comparar os rácios de camas de cuidados intensivos em Portugal com a Alemanha e veremos a diferença. Além disso, são produtores, em grande parte, dos equipamentos, tiveram estratégias de abordagem correta e a população aderiu. Faz toda a diferença numa crise destas ter um sistema de saúde que seja capaz de responder e de reagir. Espero que no futuro haja grande investimento no SNS, não só em ventiladores.

Um investimento no SNS como um todo …

Os ventiladores são um epifenómeno. Esperemos que não sejam necessários todos e, no final, até ficaremos com número de ventiladores superior à média europeia. É tudo o resto, equipamentos hospitalares, carreiras profissionais, reforço nos mecanismos de colaboração entre o setor público forte e o setor privado e social que é coadjuvante em situações de crise. Essa é a lição que fica para o futuro e espero que possamos todos fazer isso.

Tem de ser um prioridade para os próximos governos?

Sim, e para qualquer país. Antes desta crise, o Boris Johnson ganhou as eleições pondo no topo da agenda o reforço do NHS, o primeiro-ministro italiano tinha feito o mesmo, o francês e o espanhol também. Isto só vem reforçar. É uma boa despesa e que ajuda os países a desenvolverem-se e a serem mais ricos nas dimensões económicas e sociais.

Foi o primeiro-ministro quem deu o pontapé de saída para aquilo que era preciso fazer

Portugal, quando comparado com outros países, foi dos primeiros a tomar medidas para conter a pandemia (tendo em conta os primeiros casos e a primeira morte). Como avalia o desenrolar do ‘filme’ das ações tomadas, lembrando que, numa primeira fase, António Costa se mostrou um pouco relutante em relação ao Estado de Emergência?

Foi o primeiro-ministro quem deu o pontapé de saída para aquilo que era preciso fazer. Numa quinta-feira, contrariando – e bem – uma posição insensata do Conselho Nacional de Saúde Pública [que defendia o não encerramento de todas as escolas], o primeiro-ministro percebeu a dimensão do que tinha pela frente e tomou aí a liderança política. O primeiro-ministro foi decisivo. O ponto de viragem está nessa quinta-feira.

Depois no processo, enfim, há coisas que correm melhor, outras que correm pior. Como lhe disse, tem de haver muita preocupação com os idosos, aí creio que não temos essa frente de batalha segura. Oxalá o final do mês de abril chegue depressa para no final dizermos que o filme correu como queríamos e que possamos retomar a vida progressivamente a partir de maio.

Mas nessa altura, quando retomarmos a vida, ainda vai ser um retomar condicionado, não?

Sim, vai ser. Vamos mudar muito os nossos hábitos, o teletrabalho veio para ficar, o distanciamento social acho que vai fazer parte da nossa vida. Acho que há muita coisa que vai mudar. E tem que ver com muita coisa.

Exatamente com o quê?

Se conseguimos imunizar mais ou menos pessoas, se conseguimos ter medicamentos eficazes, se conseguimos ter a esperança de uma vacina. Agora vamos focar-nos no final de abril para ganhar margem e ver se a mola não salta.

Se estivesse ainda no cargo de ministro da saúde teria feito alguma coisa de diferente? Talvez a questão das máscaras?

É uma pergunta que não se coloca porque só quando estamos na posse de dados concretos e da informação é que sabemos. Não queria fazer nenhum tipo de especulação sobre esse assunto. Em relação à questão das máscaras, não era preciso ser ministro. Como médico de saúde pública, já há muitas semanas que eu, e outros, andamos a pugnar por uma posição clara sobre a utilização das máscaras.

É favorável a uma segunda renovação do Estado de Emergência, depois do dia 17 de abril?

Sobre isso não pode haver estados de alma. O Governo, a República e o Parlamento vão ter que analisar as condições objetivas em cima do fim do prazo. O resto é um bocadinho como estar a especular se o pico já foi ou quando é que vai ser. Não adianta nada. Se me pergunta se acho que vai ser renovável e que seja necessário, acho que sim. Para chegarmos ao final de abril temos de ter mais uma renovação. Mas pode ser renovada com algum tipo limitações e com mais liberdades.

Com uma certa folga.

Sim, para fazer a tal recuperação. Para já, temos de ter muita calma e aguardar.

Em relação à reabertura das escolas, embora a decisão seja apenas conhecida amanhã [hoje], já se sabe que tal não vai acontecer em abril. Estarão reunidas as condições para as aulas presenciais recomeçarem em maio?

Respondo-lhe como respondi em relação ao Estado de Emergência. As decisões neste momento para se aproximarem mais da efetividade têm que ser tomadas com o máximo de informação disponível à data na véspera.

Não dá mesmo para conjeturar sobre isso.

Não… Se calhar, lá para 30 de abril haverá condições para que a decisão possa ser tomada. Não vale a pena fazer palpites.

Observo com muita atenção e a única coisa que retiro de tudo isto e que concluo é que fosse qual fosse o governo, fossem quais fossem os ministros ou o primeiro-ministro, este é um tempo terrível em PortugalQuantas vezes por dia lhe vem à cabeça que poderia ser o próprio a estar no lugar de Marta Temido neste momento? E sente-se aliviado por não estar?

Nenhuma [sorrisos]. Nem me sinto aliviado nem preocupado. A vida tem destas coisas, nunca escolhemos o destino. É uma matéria relativamente à qual não tenho nenhum tipo de pensamento. Observo com muita atenção e a única coisa que retiro de tudo isto e que concluo para mim próprio é que fosse qual fosse o governo, fossem quais fossem os ministros ou o primeiro-ministro, este é um tempo terrível em Portugal, em Espanha, em Itália, por todo o lado. São tempos de grande incerteza, mas espero sinceramente que, mais uma vez, Portugal seja capaz. Portugal tem esta tendência para, em circunstâncias difíceis ser diferente dos outros.

Comportamo-nos bem em fases complicadas?

É uma característica que nos favorece muito. Somos de facto um povo extraordinário. Quando toca a reunir, nós reunimos.

É aquela característica do desenrasca?

Não é só do desenrasca. Independentemente das críticas e das picardias, temos um sentido de unidade que provavelmente vem da nossa história, o que não acontece com Espanha e Itália. Somos um país pequeno, com um povo que tem passado muitas dificuldades e que em altura de provação é extraordinário.

A diretora-geral de saúde tem sido alvo de críticas. Acusam-na de algumas contradições. Em que parte é que Graça Freitas tem estado menos bem? A nível comunicacional?

É muito fácil os treinadores de bancada criticarem. Evidentemente que quem está nestes lugares, sejam titulares de órgão político ou técnicos, há um de ter um princípio de vida que deve ter: sermos humildes. Não podemos partir do princípio que somos infalíveis. Enganamo-nos, sobre pressão, às vezes, dizemos coisas que não queremos. Mas não é altura de estar a ser injusto. Claro que a doutora Graça Freitas pode ter cometido uma ou outra falha, poderá ter tido uma afirmação fora de contexto.

Se fizermos um exercício comparativo pela Europa toda, quantos não terão feito igual, sendo certo que a motivação central das pessoas é fazer bem? Até agora não vi nada que justifique qualquer crítica. A vida política e pública não é feita em condições ideias de temperatura e humidade. Se há falhas graves, há falhas graves, não havendo, é seguir para a frente.

Cada dia que passa nos afastamos cada vez mais do cenário italiano. Agora, atenção. Como dizem os antigos, deitar os foguetes antes da festa não é bom.  Deixemos os foguetes para quando a festa acabarQue elogios faz às duas mulheres que têm estado na frente visível desta batalha?

Antes de responder a essa pergunta, digo-lhe o seguinte: neste combate, nem os governantes, nem os dirigentes técnicos se devem expor a processos de auto-elogio ou auto-promoção. Isso não é bem visto pelas pessoas. Tenho visto com apreço as referências à humildade, à sobriedade e à contenção. Isto não é sobre o ministro A ou B, o diretor-geral A ou B. Ninguém fala nas Forças Armadas, que têm sido extraordinárias, nas forças de segurança, na Administração Interna. O Governo, no seu conjunto, está a fazer tudo o que pode e o que não pode, tendo a possibilidade de acertar umas vezes e de falhar outras. E, se calhar, o governo de outro partido estaria a fazer o mesmo.

Neste momento, nenhum dos ministros que está em função merece que seja feito um campeonato de popularidade. É o tempo de as equipas estarem unidas. No final, com certeza que haverá o tempo da avaliação e aí teremos que reconhecer aquilo que correu bem e o que correu mal. Neste momento, o trabalho é um trabalho de equipa e a equipa é Portugal.

E a fotografia do jogo, na sua ótica, está positiva?

A fotografia está razoavelmente positiva e nós temos de evitar aquilo que eu dizia ao princípio desta pandemia: fazer tudo para evitar o cenário italiano.

Esse cenário já está afastado?

Creio que sim, cada dia que passa nos afastamos cada vez mais do cenário italiano. Agora, atenção. Como dizem os antigos, deitar os foguetes antes da festa não é bom. Deixemos os foguetes para quando a festa acabar. E agora vamos todos fazer o nosso trabalho confinadamente, cumprir aquilo que é o nosso dever para com os outros, para, enfim, chegar ao verão e poder usufruir do sol português e do ar puro de que muitos de nós já começam a sentir falta.

A vulnerabilidade da humanidade é global. Hoje em dia o que acontece na China tem repercussões na Argentina ou em qualquer parte. Estamos todos no mesmo condomínio Que comportamentos deve o ser humano alterar para minimizar os riscos de uma nova pandemia causada por outro vírus qualquer?

Essa matéria dava para outra entrevista. Mas talvez fosse tempo de a China revisitar os procedimentos de segurança alimentar, de higiene e salubridade. Sabemos muito bem a origem destes fenómenos e, de facto, o mundo inteiro devia melhorar aquilo que são as práticas de controlo e segurança alimentar. Penso que a China está neste momento preocupada com isso, está a procurar alterar questões de natureza cultural. A vulnerabilidade da humanidade é global. Hoje em dia, o que acontece na China tem repercussões na Argentina ou em qualquer parte. Estamos todos no mesmo condomínio.

E temos todos de seguir essas mesmas regras.

Não necessariamente, mas há mínimos. A globalização não pode ser apenas uma globalização económica, tem que ser uma globalização civilizacional. Em respeito pelas tradições e pelas diferenças culturais que existem entre os países e os povos, há questões que têm que ver com a segurança global da humanidade. Há mínimos denominadores comuns, que são aquilo põe em causa a segurança da própria humanidade, que não podem ser desrespeitados.

Portanto, deve acabar-se com tudo o que seja mercados de animais vivos?

Não digo acabar, mas regular, garantir que os riscos associados a determinadas práticas são atenuados, seguir as recomendações internacionais, olhar para a ciência e evoluir tendo em vista a saúde o bem-estar das pessoas.

Eu do governo tenho excelentes recordações. Foi um momento difícil e duro mas que me deixou grandes recordaçõesTem saudades da vida política?

Gosto muito da vida pública, gosto muito da vida civil, intervenho em tudo o que posso e da maneira que posso. Saudades é uma palavra que, em relação àquilo que vamos fazendo ao longo da vida, temos boas ou más recordações. Eu do Governo tenho excelentes recordações. Foi um momento difícil e duro mas que me deixou grandes recordações, não só pela interação que tive pelo país todo com milhares de pessoas. Mas são etapas da vida, essa etapa está concluída, espero ainda poder cumprir algumas outras.

A esta não voltará?

Não, acho que a água não passa duas vezes por debaixo da mesma ponte. Acho que a renovação é sempre boa, traz sempre vantagens, quer ao nível do Governo quer ao nível das instituições e das entidades. Acabei por estar três anos no governo, para ministro da saúde foi muito. Em Portugal talvez tenha sido um dos três que esteve mais tempo, mas isso não significa que o governo não seja uma equipa dinâmica que a cada momento é constituída de uma forma diferente. [Tenho] boa recordação, mas os tempos são outros. Espero é que o Governo de Portugal tenha o maior sucesso neste momento porque se isso acontecer somos nós todos que estamos a ganhar. Quando digo o Governo digo também a oposição também.

Isso leva-me a outra pergunta: O que lhe parece a sugestão do Rui Rio para um governo de salvação nacional?

Não sei exatamente qual era a ideia. Se era um governo de coligação, acho que não fará muito sentido, se é um entendimento alargado para reagir a uma situação económica grave, já fará mais sentido. Mas este não é o momento de discutir isso. Neste momento temos uma crise pandémica e a seguir vamos ter uma crise económica brutal.

Temos muito a tentação de começar a discutir os problemas um bocadinho antes do tempo, acho que o próprio Rui Rio o que disse foi se isso se vier a colocar no futuro, não fechará a porta. É um problema que provavelmente se colocará no futuro e serão os partidos a discutir. Pessoalmente, nem tenho nada contra nem nada a favor. É uma discussão colocada antes do tempo e que neste momento perturba um bocadinho até aquilo que tem sido o funcionamento tão harmonioso do Parlamento e dos órgãos de soberania.

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