Não é a posse, mas sim a apreciação do programa de Governo pela Assembleia da República que constitui o "passaporte" para a entrada do executivo em plenas funções, sublinhou o constitucionalista Paulo Otero, em declarações à Agência Lusa.
"Antes da apreciação do seu programa pela Assembleia da República, ou após a sua demissão, o Governo limitar-se-á à prática dos atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios públicos", prevê a Lei Fundamental.
Apesar de a Constituição não definir o que cabe nos poderes de um governo limitado à gestão, vários constitucionalistas coincidem na interpretação de que o critério é o da "estrita necessidade" do ato.
Caso seja rejeitado no parlamento, através da aprovação de moções de rejeição, o Governo é automaticamente demitido e mantém-se em gestão até à posse do que o vier substituir.
Paulo Otero sublinhou que essa situação não só é "juridicamente possível" como "não é inédita a hipótese de um governo ser um governo de gestão durante toda a sua vida" como aconteceu em 1978 quando a Assembleia da República rejeitou o programa do III Governo, de Nobre da Costa.
O constitucionalista lembrou ainda que o governo que esteve mais tempo em gestão foi o VIII Governo, liderado por Pinto Balsemão, que anunciou a demissão em dezembro de 1982 e se manteve em funções cerca de seis meses, até à posse do IX Governo, em junho de 1983.
A Constituição da República não obriga o Presidente da República a nomear quem não quiser, coonsiderou, já que o que está previsto é que "nenhum ministro é nomeado sem a convergência de duas vontades, a do primeiro-ministro e a do Presidente da República".
A discussão do programa do Governo está marcada para 9 e 10 de novembro. PS, BE e PCP já anunciaram a intenção de apresentar moções de rejeição.
Uma possibilidade que o constitucionalista Tiago Duarte considera "subverter o espírito" dessa figura constitucional que "foi criada para proteger governos minoritários e não para os derrubar", desde logo porque não é exigida a aprovação do programa de governo e, em segundo lugar, porque a aprovação de moções de rejeição exige maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções.
Para o constitucionalista Vital Moreira, se após a rejeição do programa do Governo o Presidente da República decidir nada fazer, mantendo o executivo de Passos Coelho em gestão, "violaria a sua obrigação constitucional de nomear um governo em plenitude de funções, para assim assegurar o regular funcionamento das instituições que lhe compete garantir e salvaguardar".
No seu "blogue" Causa Nossa, Vital Moreira já escreveu que "é óbvio que os governos de gestão são por definição soluções transitórias, destinadas a ser substituídos logo que possível por soluções de governo com plenos poderes".
Consensual é a ideia de que um governo de gestão é sempre "uma opção de transitoriedade".
Representando "uma situação transitória", as competências de um governo de gestão "são limitadas", sublinhou Tiago Duarte, destacando que cabe ao executivo decidir o que é ou não é "inadiável" para a gestão dos negócios públicos.
"A régua pela qual se deve medir não é saber se são decisões de `lana caprina´, é saber se são inadiáveis", sustentou o constitucionalista, exemplificando que o memorando de entendimento com a `troika´ foi assinado cerca de dois meses depois de o então primeiro-ministro, José Sócrates, ter apresentado a demissão.
"E será que pode aprovar um decreto-lei? Pode, desde que considere que é estritamente necessário. A função de controlo cabe aos tribunais, se a questão for suscitada pelas partes", disse, no mesmo sentido, Paulo Otero.
Foi o que aconteceu em 2002, quando o então Presidente da República Jorge Sampaio questionou o Tribunal Constitucional se caberia na competência de um Governo demitido a aprovação de alterações quanto à forma de designação dos órgãos de direção dos estabelecimentos hospitalares.
No acórdão 65/02, o TC entendeu que os poderes não estão limitados em função da natureza dos atos admissíveis e que "o critério decisivo para o efeito é antes é da estrita necessidade da sua prática".
"Não é aceitável que se entendesse o preceito no sentido de que os `atos estritamente necessários para assegurar a gestão dos negócios público´ seriam, justamente, os atos de gestão corrente", é referido, salientando que "o interesse público pode reclamar a prática inadiável, por exemplo, de atos legislativos", refere o acórdão.