"Estava na melhor equipa de F1 e fui para a pior da Formula E. Foi duro"

É o atual líder do campeonato de Formula E e, aos 28 anos, António Félix da Costa está prestes a discutir o tão desejado título no próximo mês de agosto, em Berlim. A propósito deste facto, aquele que é para muitos o melhor piloto português da última década recordou em entrevista ao Desporto ao Minuto alguns episódios marcantes da sua carreira em mais uma rubrica 'Dos 0 aos 100'.

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Ruben Valente
07/07/2020 09:02 ‧ 07/07/2020 por Ruben Valente

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António Félix da Costa

É no dia 5 de agosto que António Félix da Costa dá início ao que pode ser um dos momentos mais bonitos da sua carreira. O Campeonato de Formula E vai recomeçar - e disputar-se por completo na cidade de Berlim, com transmissão integral nos canais Eurosport - e o piloto português da DS Techeetah tem pela frente seis corridas para se tornar pela primeira vez campeão na modalidade.

Aos 28 anos, Félix da Costa é o atual líder do Campeonato de Formula E e, antes de rumar à Alemanha para discutir o título, esteve à conversa com o Desporto ao Minuto em mais uma rubrica 'Dos 0 aos 100'.

O melhor piloto português da última década, distinguido pela revista Autosport, além de falar da luta acesa na Fórmula E, recordou momentos passados na Red Bull, a malograda chamada que o informou que já não ia para a Formula 1, tal como o impacto que sentiu com a mudança para a Formula E.

Félix da Costa revelou também que Lisboa pode tornar-se palco de uma corrida do Mundial de Formula E e confessou que sente que, apesar de difícil, existe uma "janela com uma pequena brecha aberta para a F1".Sucesso nas pistas desde cedo? Sentia-me um criminoso por faltar às aulas. Há coisas que têm de mudarSei que te iniciaste no karting, um pouco por influência familiar, mas desde início pensavas já um pouco no futuro ou só querias mesmo divertir-te?

Tive a sorte de nascer neste meio, tinha dois irmãos que corriam e o meu pai puxou-me muito para a modalidade. Como comecei tão novo, ia para a escola e às tantas só olhava para o relógio para ver quando é que tocava para ir para a próxima corrida do nacional de karts na altura. O que eu queria sempre era ir correr, a escola até ficava um pouco para segundo plano. O pensamento natural foi sempre que as corridas fossem uma prioridade. Muitas vezes as pessoas perguntam-me isso, mas eu acho que foi desde sempre uma coisa que eu quis.

Com 11 anos ganhaste os teus primeiros títulos nacionais. Mais tarde começaste a participar em provas europeias e foste, por exemplo, vice-campeão da World Series Karting e 3.º classificado no Open Master Italia. Como é que ainda tão novo lidaste com o sucesso?

Não é fácil e vou explicar porquê, devido a algo que só me vim a aperceber há pouco tempo. Nós estamos num país em que parece que não ajudam quem quer ser atleta. Estás na escola e está tudo muito automatizado para teres de tirar a melhor nota. Eu faltava muitos dias porque fazia Campeonatos do Mundo, Campeonatos da Europa, com uma regularidade que era de uma vez por mês. Tinha um estatuto de alta competição, que me deixava justificar essas faltas à escola, mas de facto não tinha ajudas nenhumas para fazer exames, para os adiar… Houve muitas vezes em que nem sequer tive nota porque faltava. Parece que toda a gente nas escolas ou no país está aqui para dificultar. E não falo apenas da minha modalidade, falo para todas. Basta olhar para os Estados Unidos, que têm uma quantidade de atletas aqui e ali, e têm os chamados ‘scholarships’ [bolsas de estudo]. Eles têm uma mentalidade que é: ‘Este jovem é muito bom no que faz? Então vamos ajudá-lo’.

Falta-nos um bocadinho essa cultura e foi algo que eu só me apercebi há pouco tempo. Na altura, toda a gente me tratava um pouco mal e eu já me sentia quase um ‘criminoso’ por estar a faltar. E não…! Tem de ser ao contrário. Por sorte, eu tenho uma família que me apoia, amigos que me apoiam, isso nunca faltou. No entanto, isto pode ter consequências a longo prazo numa criança. Há certas e pequenas coisas que deviam mudar, não para vermos resultados amanhã, mas para podermos ver esses resultados daqui a 10 ou 15 anos. Somos um país pequeno, mas temos muito talento cá! E temos de encorajar quem tem esse talento para que ainda apareça mais.

Continuando a falar sobre o teu percurso, em 2008 começaste a competir nos monolugares, no ano seguinte venceste o campeonato de Fórmula Renault 2.0 e acabaste por ser convidado para a Academia de Jovens Pilotos da Red Bull. Sei que os irmãos Couceiro foram muito importantes nesse processo, mas conta-nos um pouco aquilo que antecedeu a tua entrada na Red Bull?

Comecei a correr nos karts com a Couceiro Junior Team, uma equipa do Pedro e do Nuno Couceiro, que cá em Portugal estava muito bem montada para ajudar os miúdos. Fui muito bem acompanhado e sempre tive o meu pai por perto, que sempre teve um grande olho para tomar decisões e ver os passos que íamos dar. Depois de nove anos com a equipa Couceiro decidimos desvincular-nos e tive uma proposta muito boa para ingressar na equipa Tony Kart em Itália. Foi a equipa de onde saíram o Vettel, o Schumacher… Fiz até vários testes com o Schumacher. O meu último ano de karts foi com essa equipa e depois é que dei o salto para os monolugares e para a Formula Renault, com uma equipa alemã que se chama Motopark, onde esteve também o Filipe Albuquerque e o meu irmão Duarte. O dono da equipa até disse ao meu pai: ‘olha eu não quero o teu filho mais velho, quero é o teu filho mais novo. Quando ele decidir sair dos karts, liguem-me’. E assim foi. Foi uma grande escola na altura, esteve lá o Valtteri Bottas, que está agora na Formula 1, tive como companheiro de equipa o Kevin Magnussen, que está também na Formula 1. Sempre tive a sorte de estar rodeado de pilotos muito muito bons, que aceleram todo o processo de aprendizagem.

Vettel sempre me pôs debaixo da asa dele, fazia a rotina toda com ele, ia para o hotel com ele, dava a volta à pista com ele. Aprendi muitoDepois então é que vem a Red Bull Junior Team…

Exatamente. Eu fiz umas corridas para uma equipa inglesa que é a Carlin, e o Trevor, dono da equipa, ligou-me e disse-me: ‘olha, só para saberes que o Helmut Marko vai ligar-te porque eles vão substituir um dos pilotos deles’. Ligaram-me e tivemos uma relação de sete anos, muito positiva. Ao fim de dois meses de estar na Red Bull já tinha guiado um ou dois carros campeões do mundo por eles. Foi algo que aconteceu muito depressa, mas foi muito bom. Importa referir, ainda antes disto, que em 2010 comecei a trabalhar com o Tiago Monteiro e aí foram dados grandes passos. No paddock de Formula 1 todos o conhecem, todos lhe abrem a porta, todos lhe atendem o telefone, e ele foi uma grande ajuda para a minha carreira.

Notícias ao MinutoAntónio Félix da Costa ao lado de Helmut Marko, o responsável pela Red Bull Junior Academy© Getty Images

E como foi, de um momento para o outro, estares ali ao pé das grandes estrelas do Mundial de Formula 1?

Ganhei uma grande ‘estaleca’ e rápido. Quanto mais te dás e mais te envolves com malta competitiva e muito forte, aceleras o processo de aprendizagem. Comecei a ir às corridas de Formula 1 como piloto de teste e reserva, ou seja, se eles se magoassem era eu que entrava. O Vettel sempre me pôs debaixo da asa dele, fazia a rotina toda com ele, ia para o hotel com ele, dava a volta à pista com ele. Aprendi muito com ele, mas sim no início foi um choque: ‘Olha, António, está aqui o teu fato, veste-o aí para ver se te serve’. Quando meto o fato, tenho um igualzinho ao Webber e ao Vettel… Foi aí que percebi que a partir desse momento, a qualquer dia, podia ser chamado para correr na Formula 1.

Estava praticamente tudo acertado para entrares para a F1, como todos sabemos, mas foi o Daniil Kvyat o escolhido. Já falaste várias vezes sobre isso, mas há uma pequena história sobre um problema na última corrida do World Series by Renault que até o teu pai estranhou… Queres contar-nos esse episódio?

São teorias, mas foi naquela altura que no ‘background’ já estava decidido que era o Kvyat que iria para aquele lugar da F1, mesmo que todos os media apontassem que o lugar era meu. Nesse fim de semana, eu tinha a última corrida da World Series by Renault, em Barcelona, em que tinha ganho as duas provas no ano anterior. Nesse ano o meu carro estava impossível de guiar, péssimo… Fiz a qualificação em 12.º, na corrida lá recuperei e acabei em 4.º. Mas a seguir a essa qualificação, eu acabaria por perder o oficialmente o campeonato, e a seguir a isso descobrimos que estava uma peça na frente do carro, uma barra estabilizadora, partida. E normalmente qualquer mecânico ou engenheiro é capaz de ver aquilo no próprio segundo e nós só vimos aquilo após a qualificação. Eu perdi o campeonato, o Kvyat vai correr na GP3 a Abu Dhabi, ganha a corrida e é campeão. Por isso, sim, a história bateu toda certa para dar vida a esta teoria.

Foi mais duro teres recebido a notícia de que não ias para a Formula 1 ou encarares todas as pessoas próximas de ti e dizeres: ‘olha, já não vou ser piloto na F1’?

Os dois. Eu lembro-me que toda a gente assumia que eu já lá estava, que o lugar era meu. Foi uma junção de gerir expectativas e desilusões. Foi algo que eu trabalhei uma vida inteira para lá chegar, mas também para a minha família, foram demasiadas coisas para gerir. Caiu-me o mundo numa chamada de um minuto.

E como foram os dias de testes com o Force India da F1 e mais tarde com o Toro Rosso? Foi, ainda assim, o completar de um sonho?

A primeira vez que andei num Fórmula 1 foi em Abu Dhabi num Force India e foi, de facto, uma experiência incrível. Tinha lá o meu irmão, o meu pai, o Tiago Monteiro… Assim que eu dou a primeira volta e volto à box estavam todos a perguntar: ‘Então, então?’. Eu só lhes disse que era impossível de explicar. Só quem anda é que sabe a loucura que é. É de facto uma peça de engenharia brutal, tudo bem montado, é incrível. Foi um dia muito especial na minha vida. Mas quando fui andar de Formula 1 com a Red Bull teve de ser com uma mentalidade um bocadinho diferente. Estava a andar com a equipa que tinha sido campeã nessa altura e todas as voltas ali valem, e é para bater uma Ferrari, uma Mercedes, uma McLaren, seja quem for. Eu estava a divertir-me, estava a ser ótimo para mim, mas sempre com a cabeça focada no trabalho e nas análises que tinha de fazer. São experiências muito boas que guardo.

Notícias ao MinutoAntónio Félix da Costa num dos vários testes que fez num Fórmula 1 na Red Bull© Getty Images

O destino levou-te então para a BMW na Formula E, que naquela altura, em 2014, ainda não era uma competição tão desenvolvida como agora. Sentiste muito essa diferença após a saída da Red Bull?

Sim, sim. Até porque na altura eu entrei para uma das piores equipas da Formula E. Estava mal preparada, tudo feito à última da hora, e eu tinha acabado de perder a entrada na Formula 1, na melhor equipa da F1, e estava a ir para a pior da Formula E. Foi ali uma fase que mentalmente teve de ser trabalhada e que me tive de mentalizar das coisas. Consegui, felizmente, passar toda a frustração muito rapidamente.

Foram seis anos na BMW. De certeza colecionaste vários momentos felizes na equipa alemã, mas há algum em particular que te fique na memória?

O DTM, sem dúvida, uma das categorias que eu corri pela BMW, foi uma das boas fases da minha carreira. O meu primeiro colega de equipa foi o Timo Glock, que também teve muito bons resultados na F1, e até estava a ser melhor do que ele. Foram experiências muito giras e que me ajudaram a criar o meu nome noutros caminhos. Estava a fazer o DTM e a Formula E ao mesmo tempo, e ganhei logo uma corrida no início da Formula E, o que foi muito bom.

Artrito com o Vergne? No fundo é como teres dois leões numa jaula e meteres lá um bocado de carneSe compararmos um monolugar elétrico e um híbrido normal de F1, qual consideras ser mais exigente de dominar na ótica de um piloto?

É completamente diferente. É como comparares o Rallycross ao Campeonato do Mundo de Ralis [WRC]. São carros que por fora são relativamente parecidos, mas a maneira de fazer corridas é diferente. Nós, na Formula E, há muita gestão de energia, há muita estratégia de corrida. Qualquer coisa que possas fazer no início vai influenciar no final, ou vice-versa. Tens que planear a corrida desde a primeira volta, enquanto que na Formula 1 não é assim. Basicamente, eles apesar da gestão de pneus, é sempre a fundo. São carros diferentes, mas um Fórmula 1 é o carro mais rápido do mundo e há de continuar a ser, mas a Formula E não existe para destruir a F1. Há espaço para as duas e são maneiras de se fazer corridas de forma diferente. 

Começaste a ganhar o teu espaço na competição e no início do ano passado trocaste a BMW pela DS Techeetah, a campeã em título. Foi o anúncio decisivo do ‘eu estou aqui para ser campeão’?

Foi mais um passo que dei a pensar em mim, a pensar apenas no António. Queria rodear-me das melhores pessoas, das melhores oportunidades, para ganhar o campeonato. É um contrato que não é apenas de um ano, mas não estava à espera que no primeiro ano chegasse logo essa oportunidade. Tem estado a correr muito bem, juntei-me à equipa campeã e tenho como colega de equipa o atual bicampeão. Sabia que ia ser uma entrada complicada, mas correu tudo bem, fomos rápidos desde o início. Neste momento somos líderes do campeonato e vamos ver como é que tudo isto acaba daqui a um mês.

No decorrer da época assumiste-te como candidato ao título pelos resultados, mas houve ali alguns episódios com mais artrito com o Vergne… Ele não aceitou bem que, em vez de apenas um colega de equipa, teria também um adversário?

Ele aceitou inicialmente porque ele até fez alguma força para eu entrar na equipa, mas depois, claro, quando chega o verdadeiro momento de ser o frente a frente, se calhar custou-lhe um bocadinho. Ele sabe que eu sou um bom piloto, respeita-me e acho que daqui para a frente não vamos ver uma repetição desses episódios. No fundo é como teres dois leões numa jaula e meteres lá um bocado de carne… É normal. É por isso que ele é campeão, porque é um vencedor, um piloto ambicioso e custa-lhe perder. A mim também me custaria, mas ultrapassámos bem tudo, logo a seguir a esse episódio até fomos os dois para neve juntos. O que se passa dentro da pista, fica dentro da pista.

Notícias ao MinutoFélix da Costa a festejar a vitória no e-Prix de Marraquexe. Max Guenther (BMW) foi 2.º e Jean-Éric Vergne (DS Techeetah) terminou no 3.º lugar© Getty Images

A Formula E regressa já em agosto e a competição vai fazer-se toda na cidade de Berlim. Achas que isso é um ponto a favor ou contra, tendo em conta que és neste momento o líder do Mundial?

Nem um, nem outro. Acho que a Formula E está cheia de equipas boas e que vão todas evoluir a um passo muito rápido. Vai ser na base de minimizar os erros e os dias maus, e nos dias que der para ganhar, vamos ter de ganhar. Vamos ver como corre, mas acredito que estou numa equipa que não é bicampeã por acaso e que lida bem com a pressão. A DS Techeetah está habituada a ganhar e tenho plena confiança que estou no sítio certo para atacar este campeonato.

Nos últimos anos já vi de tudo na Formula 1. O Kvyat parece um gato com sete vidasA FIA já assegurou a FE como competição oficial. Achas que isso será um passo à frente para a Formula E ser uma referência mundial como é a Formula 1?

A partir da próxima época a Formula E é um Campeonato da FIA, mas basicamente é uma formalidade. Na prática não vai mudar nada porque nós já corremos pelo mundo inteiro. Mas quem for campeão no ano que vem já pode intitular-se campeão do mundo. É um título que no papel vai ter tanto valor como o da Formula 1 e isso é um passo importante para a Formula E.

Sendo português terias certamente muito gosto se Portugal fosse palco de uma corrida de Formula E. Achas que isso pode estar para breve?

Posso dizer que já existiram uma reuniões prévias na Câmara de Lisboa, nas quais eu estive presente, para se falar numa eventual corrida da Formula E e, por acaso, acho que Belém tinha sido o sítio escolhido na altura. Acho que somos um país que adora desporto, vimos isso no Europeu, com o Kikas no Surf, com o Miguel Oliveira nas motos, eu próprio sinto um grande apoio. Não tenho dúvidas que teríamos muito público e que seria um evento espetacular.

E no WEC? Quais são as tuas perspetivas para o regresso às pistas?

É um campeonato onde estamos bem posicionados, estamos em terceiro lugar. Foi pena a desqualificação de Fuji porque foram 18 pontos que nos colocariam na frente do campeonato. Foi por uma estupidez, uma irregularidade no carro que em nada influenciava na corrida. Estamos muito bem preparados, o grande objetivo é ganhar as 24 Horas de Le Mans, que serão no dia 19 de setembro, mas se der para ganhar o campeonato era o melhor. Ganhar os dois campeonatos FIA ia ser ótimo. Aqui no WEC temos um adversário que eu conheço bem, que é o Filipe Albuquerque, que está muito forte, os três pilotos são muito bons, a equipa é muito boa, e tenho a certeza que é um carro muito difícil de bater.

Neste momento, estás com 28 anos, tens esta possibilidade de te tornar campeão na FE e de certeza muitas corridas pela frente. Achas que, de alguma forma, a hipótese Formula 1 ainda existe?

É uma janela que está, talvez, com uma 'brechazinha' ainda aberta. Acho complicado… Não sou velho, mas as equipas andam a apostar em pilotos cada vez mais novos. No entanto, nestes últimos anos vi tanta coisa. Vi pilotos a terem segundas e terceiras oportunidades, o Kvyat por exemplo parece um gato com sete vidas. A minha Super Licença está ativa ainda, por isso nunca se sabe.

Notícias ao MinutoAntónio Félix da Costa (#13) em ação na Formula E© Getty Images

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