Requisição civil no Zmar. Pode ou não o Governo ocupar imóveis privados?

Face aos últimos acontecimentos no concelho de Odemira, referentes à requisição civil feita pelo Governo no empreendimento Zmar, o Notícias ao Minuto contactou a Abreu Advogados, para pedir esclarecimentos judiciais sobre o que se está a passar. Tiago Leote Cravo, Associado Principal da Abreu Advogados, respondeu.

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© Abreu Advogados

Ana Rita Soares
07/05/2021 16:45 ‧ 07/05/2021 por Ana Rita Soares

Casa

Zmar

Pode ou não o Governo ocupar habitações privadas, ou seja, de proprietários individuais?

Comecemos por contextualizar legalmente esta iniciativa do Governo.

O Despacho n.º 4391-B/2021, de 29 de Abril (publicado em DR), conjuntamente subscrito pelo Primeiro-Ministro e pelo Ministro da Administração Interna, procedeu ao reconhecimento antecipado da declaração de calamidade no Município Odemira.

Este despacho determinou no seu ponto 3: "a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional, da totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes que compõem o empreendimento ZMar Eco Experience, sito na Herdade A -de -Mateus, em Longueira -Almograve, Odemira."

A referida requisição teve como norma habilitante o artigo 24.º da Lei de Bases da Proteção Civil (aprovada pela Lei n.º 27/2006, de 3 de julho) e que prevê, precisamente, que quando seja decretada a situação de calamidade, possa haver lugar ao "reconhecimento da necessidade de requisitar temporariamente bens ou serviços".

A requisição enquadra-se assim legalmente na Lei de Bases da Proteção civil e que acaba por se assumir como um instrumento legislativo fundamental para dar resposta a situações de emergência, designadamente a situações de risco grave e que permitem ao Governo identificar três tipos de situações como sejam, por ordem de maior gravidade, a situação de calamidade, a situação de contingência e a situação de alerta.

Cada uma destas situações permite ao Governo o uso de medidas anormais, vale por dizer, medidas que podem limitar ou condicionar o exercício de direitos plenos em situações de normalidade. E será justamente na situação de calamidade que se notam poderes mais intensos e também mais invasivos dos direitos dos cidadãos.

Como muitas destas medidas restringem ou limitam direitos fundamentais e de outra espécie, o recurso e escolha das medidas está claramente limitado por imprescindíveis princípios constitucionais, um dos quais e talvez o mais relevante, será o Princípio da Proporcionalidade.

Quererá isto em termos simples dizer que, cada medida a adotar especificamente e que possa contender com direitos que em condições normais devem ser respeitados pelo Governo, deve ser cautelosamente ponderada.

Em que condições pode ser feita a requisição civil? 

Como acabámos de notar, em termos formais, pode reconhecer-se que o Despacho n.º 4391-B/2021, de 29 de Abril que procedeu à requisição de bens surge formalmente enquadrado e habilitado pela Lei de Bases da Proteção Civil.

Porém, em termos materiais, pode efetivamente discutir-se se esta medida se revela compatível com o Princípio da Proporcionalidade.

Para auxiliar-nos nessa análise, podemos dizer que para a medida ser proporcional deve passar dois testes stress essenciais e que podemos reduzir às seguintes questões concretas:

A requisição teve na sua génese uma necessidade pública grave e urgente?

Por outro lado, o Governo não dispunha de outras alternativas, menos lesivas para os direitos dos privados, que lhe assegurassem os mesmos (ou melhores) resultados?

Vejamos.

Ao passo que a resposta à primeira pergunta se apresentará, segundo cremos, claramente positiva (isto, tendo em conta as informações que têm vindo a público sobre o elevado número de casos em Odemira e a necessidade de isolar pessoas para evitar riscos de contaminação descontrolada no Concelho), já a segunda questão, diremos que será bem mais delicada.

De facto, temos muitas dúvidas em reconhecer que o Governo não tivesse ao seu alcance outras medidas que não exigissem uma requisição forçada da propriedade privada, designadamente, a negociação e alojamento das pessoas em unidades hoteleiras da região ou em zonas próximas, ou, a acomodação das pessoas em edifícios públicos do Concelho ou em zonas próximas, ou, ainda e até, a acomodação das pessoas contaminadas em zonas mais deslocadas mas em que não houvesse uma necessidade de recorrer à requisição. 

Na verdade, não podemos deixar de nos questionar: antes de forçar os particulares a cederem o que estes não querem ceder – com tudo o que isso implica do ponto de vista da eventual violação de direitos fundamentais como o direito à propriedade ou à habitação – não haveria outras formas cooperativas e não invasivas de resolver a questão?!

Para nós, que entendemos que os direitos fundamentais devem merecer uma primazia irrestrita, temos muitas dúvidas sobre esta segunda questão. Caberá agora ao Governo fundamentar esta sua opção e demonstrar, para legitimar política e juridicamente esta sua escolha, que não havia outras opções tão ou mais viáveis e menos invasivas para os particulares. O que não será, por certo, uma tarefa fácil, por nos parecer relativamente claro que, mesmo num cenário de urgência, haveria outros caminhos alternativos a explorar.

Enfim, diremos, mais do que se tratar de uma questão sensível do ponto de visto jurídico, diremos que a opção será muito questionável do ponto de vista estritamente político.

O que poderá acontecer caso essa ocupação seja feita?

Os particulares, no exercício do seu direito à tutela jurisdicional efetiva, podem reagir judicialmente contra esta requisição, levando aos tribunais – como cremos que já sucedeu, inclusivamente com uma providência cautelar movida pelos particulares para esse efeito – o exame à legalidade desta requisição, designadamente, por recurso a meios de tutela urgentes e enquadráveis na jurisdição própria e que cremos ser a jurisdição administrativa.

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