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António Borges Coelho e uma vida "no fio da navalha" pela liberdade

O historiador António Borges Coelho, de 90 anos, recordou "uma vida muito difícil", "no fio da navalha", no Portugal da ditadura, tendo lutado em prol da liberdade e pela verdade, sem gostar de seguir dogmas.

António Borges Coelho e uma vida "no fio da navalha" pela liberdade
Notícias ao Minuto

09:18 - 15/10/18 por Lusa

Cultura Historiador

Autor de obras como 'Raízes da Expansão Portuguesa', Borges Coelho pretendia tornar-se escritor, estudou para padre franciscano, mas foi à luta política pela liberdade de pensamento que dedicou, em exclusivo, onze anos da sua vida, na oposição à ditadura do Estado Novo (1933-1974), que lhe retirou os direitos.

"A situação era tremenda, eu não tinha direitos políticos, não conseguia tirar a carta de condução. Para o conseguir tive de mover um processo ao Estado", contou à Lusa, referindo que a polícia política do Estado Novo o interogou e prendeu várias vezes.

Em entrevista à agência Lusa, Borges Coelho recordou os tempos difíceis que viveu logo na juventude: "Vim para Lisboa, em 1948, para me matricular na universidade, mas numa situação muito difícil, eu queria era ser escritor, mas pensei: 'O que vai ser a nossa vida, e para a minha geração?' Eu já vinha um pouco revoltado, tinha sido seminarista, nos franciscanos, inicialmente muito devoto, nos últimos anos não me adaptei, tentei sair e não me deixavam, consideravam um pecado. Até que fui expulso".

Natural de Murça, em Trás-os-Montes, testemunhou a vida difícil que viviam as populações, em particular as economicamente mais desfavorecidas, à mercê dos grandes proprietários e das autoridades.

"Além do ideal da justiça social, era o ideal da liberdade. As pessoas [hoje] não fazem a ideia do que era viver naquele tempo. Eu vi as autoridades nomeadas por Lisboa, em Trás-os-Montes, bater, na câmara municipal, com um 'cavalo-marinho' [um chicote em forma de bastão], num assalariado rural, acusado de roubar fruta para comer, porque estava com fome", recordou.

"Havia uma discriminação e violência na vida quotidiana... Quais leituras ou liberdade de pensamento, ou liberdade de expressão?!", exclamou o historiador. E garantiu: "Era um ambiente irrespirável", o Portugal do Estado Novo de António de Oliveira Salazar.

Borges Coelho matriculou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em não prosseguiu os estudos e dedicou-se à oposição ao regime. A sua "verdadeira formação política foi no Movimento Democrático Unitário Juvenil" (MUD-Juvenil), declarou à Lusa.

"A minha grande formação política foi o MUD-Juvenil, que era praticamente autónomo. Apesar de o Partido Comunista ter uma célula lá dentro, não tinha a capacidade de o controlar. O MUD-Juvenil tinha mais de mil quadros em todos o país, era um grupo de peso".

Borges Coelho foi membro do MUD e, durante seis meses, funcionário do Partido Comunista Português, de onde saiu em 1991.

"Foi já como funcionário do PCP que fui preso [em 1957], num almoço. Na altura da detenção gritei como nunca o fiz na vida, e fui levado para o Aljube [prisão em Lisboa], onde estive nas chamadas 'gavetas', e julgado no Porto, tendo estado posteriormente preso em Peniche", onde se casou, em 1962.

Quando esteve preso no Aljube, em Lisboa, leu, através do Diário Popular, o "Relatório Khrushchov" ao XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, realizado em 1956, o que causou-lhe "uma impressão muito funda". Foi o seu primeiro "esfriamento" com o PCP, sem deixar o partido.

"Eu já tinha notado no último ano que tinha havido uma mudança de orientação política, e aquilo abalou-me um bocado. A ideia de me dedicar inteiramente à luta política desapareceu-me do horizonte. Apesar de ter seguido todos os trâmites, fui julgado no Porto e fui preso, mas o meu horizonte era agora ser escritor".

António Borges Coelho foi o dirigente do MUD-Juvenil que teve a sentença mais pesada. Condenado a dois anos e nove meses, veio a cumprir cinco anos de prisão no Forte de Peniche.

Sobre o PCP, "considerava ser gente sincera que lutava por um ideal e pela liberdade, como eu lutava". "Estava solidário e mantive-me ligado ao PCP até 1991, e ainda hoje aos meus amigos... E as cadeias que me prenderam ao passado ninguém as pode cortar, essas continuam".

Em 1991, "a descoberta, mais uma vez, que de afinal as coisas não eram o que pareciam, isto é, havia violações fundamentais - e se há um direito fundamental, é o direito à vida", disse Borges Coelho, suspendendo no entanto as declarações. "Mas não quero falar, pois levaria para um campo que não desejaria".

"De certo modo, senti-me desiludido e escrevi uma carta ao partido onde afirmei: 'Solitário, mas solidário', e mantenho esse meu percurso. Mas tenho as minhas ideias próprias".

"Como historiador dificilmente podia ser um militante a sério de qualquer partido, porque era muito difícil manter a honestidade completa: ou é ou não é", disse à Lusa, referindo que nunca se sentiria livre "e completamente honesto" para com o seu ofício de historiador.

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