Epalanga, autor angolano do romance "Também os brancos sabem dançar" e Faye, do Burundi, que escreveu "Meu pequeno país", emocionaram o público brasileiro ao falar sobre o processo de composição destes livros que têm em comum a música e a presença do tema imigração, misturados num caldeirão onde o limite entre a autobiografia e a ficção se confunde.
"O livro [Também os brancos sabem dançar] nasceu do meu ponto de vista, mas senti que era interessante desdobrar esta história porque embora o livro fale sobre música o fio condutor é a imigração. Na primeira parte, o meu personagem tenta ir para o norte [da Europa] para conhecer o topo do mundo, e na segunda parte eu tento construir outro personagem que é o polícia que me prendeu quando tentei entrar na Dinamarca e acabei preso", contou Kalaf.
O autor angolano explicou que há também um personagem feminino fictício nesta obra, que entra na terceira parte, e representa a importância das mulheres na raiz do kuduro, ritmo que embala a sua carreira musical e também o seu fazer literário.
"Para mim era importante trazer no meio do livro e enaltecer a importância que são os lugares de dança. Não só pela coisa festiva, mas também como um lugar de salvação. (...) Música para mim é vida, não consigo colocar de outra forma porque tenho a sorte de viver da música, de trabalhar com música, viajar, conhecer o mundo. Até a própria literatura tornou-se mais fácil para mim porque tive a música como porta de entrada [nas artes]", frisou Epalanga.
Já Faye emocionou a plateia ao explicar que o romance "Meu pequeno país" surgiu de da frustração que viveu quando emigrou com a família para França, na década de 1990, época em que conflitos armados acabaram por desencadear uma onda de violência na África Oriental, cujo ápice foi o genocídio de Ruanda (ocorrido em 1994).
"[Primeiro] escrevi uma música que falava sobre o Burundi e da vida banal que levava lá antes da guerra. Dei conta que ao chegar na Europa, em 1995, fugindo da guerra, no olhar dos meus colegas de sala [da escola] e no ambiente parisiense, tinha-me tornado outra coisa, um emigrante, um exilado, alguém que fugia de algum lugar (...) Tive que lidar com esta frustração e decidi então escrever um romance. O livro 'Meu pequeno país' é uma continuação desta canção", contou.
"Quando comecei a escrever estava no Burundi, tinha 12 anos (..) refugiei-me na escrita de poemas, quando cheguei a França continuei a refugiar-me nos poemas porque a adaptação naquele novo mundo era difícil (...) Tinha uma quantidade de coisas a serem ditas e a escrita foi minha boia de salvamento", acrescentou.
A música, para Faye, ajudou-o a solucionar o sentimento de não pertencer completamente ao mundo que havia deixado em Burundi, onde era considerado branco porque o seu pai é europeu, nem ao que encontrou na França, onde era considerado negro e estrangeiro.
"Estava na escola [em França] e conheci um dançarino de hip hop. Eu gostei [do hip hop] porque era a arte dos pobres, que não exigia pré-requisitos. Se você sabe declamar palavras com um fundo instrumental, isto é hip hop (...) A escrita sempre foi o meu fio condutor, hoje escrevo literatura, mas não estudei literatura, [a minha aprendizagem] foi sempre do hip hop. Tenho uma urgência para escrever porque tenho coisas a dizer e não fico esperando a permissão dos outros", concluiu.
Antes do debate que reuniu os dois autores africanos e encerrou o segundo dia de atividades da Flip, o evento também promoveu um encontro entre o arquiteto angolano Nuno Grande, a cantora brasileira Adriana Calcanhoto e o ensaísta brasileiro Guilherme Wisnik numa mesa de debate cujo tema era a arquitetura, urbanismo música e literatura.
Questões indígenas, maternidade, o papel da mulher na sociedade contemporânea e a representação dos povos do sertão brasileiro, também foram temas explorado na programação oficial do evento.
Maior encontro literário do Brasil, a Flip acontece de 10 a 14 de julho na cidade de Paraty, no litoral do estado brasileiro do Rio de Janeiro.