Paula Rego, a pintora das histórias contra a opressão

As histórias, reais ou imaginadas, acompanharam a vida da pintora Paula Rego, que morreu hoje, aos 87 anos, um fascínio que começou na infância, quando a tia lhas contava, e inspirou os seus quadros, reconhecidos a nível mundial.

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Lusa
08/06/2022 12:36 ‧ 08/06/2022 por Lusa

Cultura

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Sempre que surgia em cerimónias públicas, a artista portuguesa, radicada no Reino Unido desde o início da década de 1970, reiterava a importância das histórias para as pessoas se compreenderem a si próprias e ao mundo.

"[Com as histórias] pode-se castigar quem não se gosta e elogiar quem se gosta. E depois inventa-se uma história para explicar tudo", comentou, um dia, na inauguração de uma das suas exposições, no seu museu, em Cascais, ao que chamou exatamente Casa das Histórias.

A obra da pintora raras vezes deixa um espectador indiferente, apreciadores ou não da estética do seu trabalho, marcado pela realidade da condição feminina, pelas injustiças sociais e pela recusa da opressão em todas as suas formas.

O valor internacional da sua obra evidenciou-se sobretudo em 2015 com a venda, num leilão, em Londres, da obra "The Cadet and his Sister" (1988) ("O cadete e a sua irmã", em tradução do inglês), por 1,6 milhões de euros, tornando-se um novo recorde da artista portuguesa.

A data da obra assinala um importante acontecimento na vida pessoal da pintora na década de 1980, pela morte do marido, o também artista Victor Willing (1928-1988), de esclerose múltipla.

Esse ano foi igualmente importante na carreira de Paula Rego, pois passou a ser representada pela galeria Marlborough Fine Art, em Londres, e distinguida com uma grande retrospetiva do seu trabalho pela Serpentine Gallery, na capital britânica.

Em 2021, conseguiu tornar real um dos seus maiores sonhos como artista: expor no museu Tate Britain, em Londres, uma casa de exposições que sempre viu como um baluarte masculino.

Ali apresentou uma exposição retrospetiva - com mais de 100 obras dos seus 60 anos de carreira - um feito simbólico que Paula Rego conquistou, já que sempre se tinha sentido discriminada por não poder ali levar a sua obra, sendo mulher e estrangeira.

Acabou por ser a maior a mais completa exposição de Paula Rego no Reino Unido, incluindo, além da pintura, esculturas, colagens e desenhos, desde os anos 1950, até aos mais recentes, incluindo a série "Mulher Cão", dos anos 1990, e "Aborto", uma das que mais impacto político e social tiveram em Portugal, produzida durante a campanha pela despenalização do procedimento no país.

O Presidente da República, Marcelo rebelo de Sousa, visitou a exposição, na altura, e considerou-a "única e irrepetível".

Já este ano, a sua obra foi alvo de outro reconhecimento por parte da curadoria-geral de um dos certames mais importantes de arte contemporânea do mundo: A Bienal de Arte de Veneza, com o tema "The Milk of Dreams", que privilegiou o trabalho de artistas mulheres.

Cecilia Alemani, curadora geral da 59.ª Exposição Internacional de Arte Bienal de Veneza, escolheu a pintora portuguesa Paula Rego como uma das âncoras da exposição-geral, reunindo numa sala azul do Pavilhão Central, nos Giardini, obras em pintura, gravuras e esculturas.

Em entrevista à agência Lusa uma semana antes da inauguração, em abril, a curadora considerou Paula Rego uma "artista completa" que "só agora está a ter o devido reconhecimento".

Paula Rego "é alguém que, ao longo de cinco décadas, tem dedicado o seu trabalho a temas e ideias muito fortes, a aspetos das nossas sociedades que foram obscurecidos e ignorados, cancelados, censurados, desde questões políticas, de género, liberdade de expressão, direitos das mulheres. São temas que aborda de forma muito direta e original", salientou Cecilia Alemani sobre a artista de 87 anos.

Em 2020, o Museu da Presidência da República, no Palácio de Belém, em Lisboa, assinalou o 85.º aniversário de Paula Rego com uma exposição de obras da pintora, com os trabalhos criados pela artista para o Palácio de Belém, a pedido do antigo Presidente da República Jorge Sampaio.

Maria Paula Figueiroa Rego, nascida em Lisboa a 26 de janeiro de 1935, numa família de tradição republicana e liberal, começou a desenhar ainda criança, um talento que lhe foi reconhecido pelos professores da St. Julian´s School, em Carcavelos, e partiu para a capital britânica com 17 anos, para estudar na Slade School of Fine Art.

Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian para fazer pesquisa sobre contos infantis, em 1975, e em Londres viria a conhecer o futuro marido, o artista inglês Victor Willing, cuja obra Paula Rego exibiu por várias vezes na Casa das Histórias, em Cascais.

A Casa das Histórias, que abriu em Cascais em 2009, num projeto do arquiteto Eduardo Souto de Moura, detém um acervo significativo de obras da autora, e tem vindo a apresentar exposições sobre o seu trabalho ou de outros, sobretudo portugueses, com quem tem afinidades.

Na pintura de Paula Rego surgem diversas imagens típicas da infância, por vezes fetichistas e até traumáticas, relacionadas com a violência, e os animais são frequentemente os protagonistas da sua linguagem pictórica.

Nas últimas décadas, a pintora abordou temas políticos, como o abuso de poder, e sociais, como o aborto - entre outros, do universo feminino, e o seu trabalho foi influenciado pelos contos populares, e também pela literatura, nomeadamente a escrita de Eça de Queirós, que a levou a pintar quadros inspirados em livros como "A Relíquia" e "O Primo Basílio".

Em 2010, foi ordenada Dama Oficial da Ordem do Império Britânico pela rainha Isabel II e, em Lisboa, recebeu o Prémio Personalidade Portuguesa do Ano atribuído pela Associação da Imprensa Estrangeira em Portugal.

Para incentivar os jovens estudantes a desenhar, em 2016 foi criado o Prémio Paula Rego, galardão anual para atribuir a estudantes da Faculdade de Belas Artes de Lisboa.

Paula Rego recebeu, em 1995, as insígnias de Grande-Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, em 2004 a Grã-Cruz da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, e em 2011 o doutoramento 'honoris causa' da Universidade de Lisboa, título que possui de várias universidades no Reino Unido, como as de Oxford e Roehampton.

Em 2019, foi distinguida com a Medalha de Mérito Cultural pelo Ministério da Cultura.

A sua obra está representada em múltiplas coleções públicas, a nível nacional e internacional.

O documentário "Paula Rego: Secrets and Stories", do realizador Nick Willing, filho da pintora e de Victor Willing, estreou-se a 25 de março de 2017, pela BBC, no Reino Unido, e depois em Portugal, em abril do mesmo ano.

Neste filme, Willing relata a vida da mãe de forma intimista, como mulher e artista, o relacionamento com o pai, a grande dedicação à arte e as fases de dificuldades sofridas, por falta de meios financeiros para cuidar da família, até ao progressivo reconhecimento em Portugal e no Reino Unido.

Em novembro de 2021, também a Galeria 111, que representou a pintora em Portugal desde o início da carreira, organizou uma exposição em sua homenagem, e da "relação de amizade e cumplicidade", que titulou "Saudades", com 27 obras que revisitam o seu percurso artístico desde os anos 1980 até trabalhos mais recentes, provenientes do atelier da pintora, em Londres.

Leia Também: "Uma perda nacional". Personalidades reagem à morte de Paula Rego

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