"Estou em solidariedade com a WGA a 100%, porque acredito mesmo que a sobrevivência dos escritores está em risco", afirmou o argumentista Filipe Coutinho, membro da Academia Portuguesa de Cinema que está em Los Angeles há vários anos. "Em questão está a sobrevivência do futuro da escrita como uma carreira viável", considerou.
A greve, que começou esta terça-feira, foi determinada após o falhanço das conversações entre o sindicato que representa 11.500 argumentistas e a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), que representa os estúdios da Netflix, Amazon, Apple, Disney, Warner Bros. Discovery, NBC Universal, Paramount e Sony.
"O problema principal é que os escritores têm sido cada vez mais desvalorizados, sendo forçados a trabalhar mais por menos", disse Filipe Coutinho. "Nós temos cada vez menos controlo criativo e oportunidades de evolução na nossa carreira, especialmente no mundo da televisão. Isso é inegável", salientou.
O WGA, que reúne o sindicato do Oeste (WGAW) e sindicato do Leste (WGAE), pede aumentos de 5% e 6%, mais argumentistas para cada produção, um mínimo de 10 semanas de emprego por ano, limites à utilização de Inteligência Artificial na escrita de guiões e uma renegociação dos pagamentos residuais no 'streaming'.
O sindicato calculou que este pacote aumenta em 429 milhões de dólares (389 milhões de euros) os pagamentos anuais. A contraproposta dos estúdios vale apenas 86 milhões de dólares (78 milhões de euros).
"Nos últimos 15 anos houve uma mudança radical da forma como o conteúdo é produzido e consumido e isso obrigou os escritores a adaptarem-se a esta realidade", referiu Filipe Coutinho. "Mas, ao mesmo tempo, os estúdios aproveitaram as mudanças para fazerem cortes financeiros brutais e instituir práticas que beneficiam apenas os seus cofres", apontou.
Uma dessas práticas é a quase eliminação de pagamentos residuais, que permitiam a muitos profissionais sobreviverem no intervalo entre projetos.
"Os pagamentos residuais desapareceram completamente com a mudança para o 'streaming' da televisão tradicional", disse à Lusa o argumentista Mário Carvalhal, radicado nos Estados Unidos há 12 anos.
Estes pagamentos permitiam aos argumentistas continuarem a receber receitas provenientes de séries ou filmes em que trabalharam e que depois foram licenciadas para mercados internacionais ou para passarem novamente na televisão.
"Argumentistas, realizadores e atores fazem filmes de 'x' em 'x' anos mas têm que sobreviver no entretanto. Esses pagamentos residuais eram uma grande fonte de rendimento", explicou Mário Carvalhal.
O cenário mudou desde a última greve dos argumentistas, que paralisou Hollywood entre 2007 e 2008 e teve efeitos profundos na indústria.
"Não era assim tanto dinheiro, mas eles arranjaram forma de acabar com isso através do modelo do 'streaming', em que não revelam sequer os números que têm", acrescentou. "Não há forma de saber quanto dinheiro é que eles deviam estar a pagar em residuais", acrescentou.
Carvalhal, que faz parte do Animation Guild, estava a trabalhar numa série de animação para a Apple TV+ e explicou que agora tudo vai parar. No entanto, mostrou-se totalmente de acordo com a medida: "Uma greve é sempre uma coisa extremamente difícil para toda a gente. Agora, é melhor do que as coisas continuarem da forma que estão".
Também a atriz Kika Magalhães, que está em Los Angeles há cerca de oito anos, concorda com a greve, apesar dos efeitos negativos.
"Concordo porque eles estão a ser muito mal pagos", disse à Lusa. "Tem de ser feito, as pessoas têm de ser recompensadas pelo seu trabalho e não ser só os executivos no topo a ficarem com o dinheiro", argumentou.
A atriz referiu que a ameaça de greve já vinha pairando há alguns meses e basicamente secou o mercado para os atores, com poucas ou nenhumas audições a acontecerem.
"Em termos de 'castings' [audições] não há nada, não há audições nem trabalho", referiu. "Isto afeta a indústria toda. As séries estão paradas. Uma série precisa de ter os escritores todos os dias porque eles estão sempre a mudar os guiões", continuou. "O que eles vão fazer agora é procurar guiões que estejam finalizados e vão trabalhar mais em filmes", antecipou.
A atriz vai focar-se nos próprios projetos durante a greve. No final de junho, irá estrear o filme que protagonizou e produziu, "The Girl in the Back Seat", num festival de cinema em Hollywood. Pondera também estrear-se na realização de uma curta-metragem.
"Já ouvi dizer que isto pode durar até seis meses", afirmou a atriz, lamentando que a situação tenha chegado a este ponto tão pouco tempo depois da covid-19. "Isto vai ser outra pandemia para quem trabalha na indústria", considerou.
A duração da greve é incerta, mas as previsões apontam para uma crise arrastada. Filipe Coutinho disse que as conversas na indústria falam de uma paralisação até setembro ou outubro e os mais pessimistas até dezembro.
"Se isso acontecesse seria catastrófico para a indústria em geral", considerou. "Mas seja como for, face à resistência e falta de flexibilidade dos estúdios, a greve é essencial", defendeu.
Mário Carvalhal explicou que as previsões são de vários meses porque a aliança dos estúdios e produtores "claramente queria esta greve".
"Tinham todo o interesse porque têm imensos conteúdos e podem-se dar ao luxo de ter esta greve e, no fundo, de renovar a casa, de se livrarem de contratos antigos que já não lhes convêm", afirmou o argumentista.
Filipe Coutinho partilhou uma visão similar. "Neste momento, diz-se que a greve até pode ser benéfica para alguns estúdios como a Netflix, por ter muito conteúdo no 'pipeline', e a Warner Bros., que está a tentar vender parte do negócio", disse.
"Ou seja, a nível contabilístico até podem ter alguns benefícios, mas há estúdios como a Sony que não têm serviços de 'streaming' e vão ser mais afetados pela paragem".
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