'As mulheres de Maria Lamas' é a exposição que vai estar patente no átrio da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, entre 26 de janeiro e 28 de maio.
Trata-se de uma exposição inédita, composta por 67 fotografias selecionadas pelo curador e colecionador, a partir da obra 'As mulheres do meu país', que apresenta retratos de mulheres do campo, da serra, da orla costeira e do mar, nas docas, nas minas e nas fábricas, mas também professoras, enfermeiras, empregadas dos Correios, domésticas, serviçais, mães solteiras, prostitutas, entre outras.
Maria Lamas é considerada por Jorge Calado "a mais notável mulher portuguesa do século XX", uma lutadora pelos direitos humanos e cívicos durante a ditadura do Estado Novo, que "sempre foi uma mulher de esquerda".
"Conhecida como escritora e jornalista, não lhe chamo ativista, feminista, nem sufragista, porque sei que ela detestaria. Lutou para libertar as mulheres, não como mulheres, mas como cidadãs e seres humanos. Não são direitos das mulheres, mas de todos os seres humanos", afirmou o curador, durante uma visita à imprensa.
Esta é a primeira vez que se expõe a fotografia de Maria Lamas em Portugal e é a sua primeira exposição individual, afirmou o curador, explicando que em 2009 já tinha apresentado em Paris oito fotografias de Maria Lamas, no âmbito de uma mostra dedicada a mulheres fotógrafas de todo o mundo.
"Ansiava fazer uma exposição mais desenvolvida. Tive de esperar 15 anos", afirmou o curador que, em 2016, também apresentou nove fotos de Maria Lamas numa grande mostra de fotografia mundial no Dubai.
O fascínio pelo trabalho da escritora vem de muito cedo, quando, aos 12 anos, Jorge Calado viu pela primeira vez "As mulheres do meu país", livro a que voltaria no século XXI, para constatar que a escritora é também a autora da maioria das fotografias que o compõem, cerca de 150.
Para Jorge Calado, o que se abria perante os seus olhos era algo "extraordinariamente moderno", em que transparece a empatia entre a fotógrafa e os fotografados.
"Para ela não havia momento decisivo, havia a mulher decisiva, dona do seu corpo e do seu trabalho", afirmou o curador, explicando as fotografias expostas, que representam mulheres sós, em pares, em trios ou em grupos, por vezes captadas no trabalho ou em sintonia com a paisagem circundante, fazendo de cada uma a representante da sua profissão e modo de vida.
Este conjunto de retratos revela também um "contraste": por um lado, a solidariedade feminina, mas, por outro lado, o respeito pela individualidade da mulher, explicou.
Ao longo da mostra, composta maioritariamente por retratos de corpo inteiro e várias fotografias de pequena dimensão, Jorge Calado escolheu colocar em destaque "duas das melhores fotografias, boas para a abertura da exposição".
Uma delas é a imagem de uma jovem mãe da Serra da Estrela, segurando o filho com o xaile de forma característica, num conjunto figurativo que reproduz o ambiente das eiras no tempo das colheitas.
A outra representa uma rapariga, também da Serra da Estrela, a joeirar centeio, da pequena colheita da sua família.
No inicio da exposição, apresenta-se a fotografia de uma criança no campo, em que se vê a sombra da própria Maria Lamas, naquilo que Jorge Calado classificou como o "único autorretrato" da autora.
Segundo o curador, Maria Lamas interessava-se muito pela forma como as mulheres se vestiam, na medida em que dizia muito sobre a sua situação. A título de exemplo, apontou a fotografia de uma algarvia com um chapéu, porque "trabalhava de sol a sol".
A exposição tem duas subsecções: uma sobre a ligação do trabalho das mulheres aos animais e à ajuda que estes davam, e outra sobre grupos de mulheres juntas a trabalhar, de que é exemplo o retrato de um grupo de mulheres na seca do bacalhau, na Gafanha (Aveiro), razão por que se apelidavam a si próprias "as gafanhotas".
Na opinião de Jorge Calado, com estas fotos de grupo, a autora "está a dar uma mensagem: 'Mulheres de Portugal, uni-vos'".
O curador destacou a qualidade do trabalho fotográfico de Maria Lamas, que não era fotógrafa, não dispunha de grande material fotográfico e que, findo este conjunto para o seu livro, "nunca mais voltou a fotografar".
"Nunca tinha fotografado, usou a máquina mais elementar que havia: uma caixa Kodak, com apenas um botão para premir, sem hipótese de focagem. Estas são fotografias em que a percentagem de obras-primas é absolutamente extraordinária".
Jorge Calado fez uma associação entre o trabalho de Maria Lamas e o período áureo da fotografia americana.
Evocando o 'crash' da bolsa de 1929 e a grande seca, período que deu origem à afirmação "um terço da nação mal alimentado e um terço mal vestido", Jorge Calado lembrou como o então presidente Franklin D. Roosevelt "deu um exemplo ao mundo", chamando os artistas para lhes dar conhecimento disso e instando-os a escreverem romances, comporem músicas e fazerem filmes que mostrassem aquela realidade.
"Os artistas, em qualquer sociedade, são sempre os últimos a ser chamados", lamentou Jorge Calado, valorizando a forma como "Maria Lamas fez o mesmo: mostrar as mulheres portuguesas em Portugal".
"Não há em Portugal nenhum fotógrafo que fizesse isto, e ela não conhecia a fotografia americana, por isso é único. Além disso, ela fotografou e fez os textos, isto também é único. Na América ninguém fez isto", destacou.
É por isto que, para Jorge Calado, que sempre se interessou por "mulheres que se afirmaram ao longo da História", Maria Lamas foi uma mulher "sempre à frente do seu tempo" e "acima" de convenções que tendiam a compartimentar as mulheres em classificações.
"Maria Lamas foi uma mulher absolutamente genial, para mim a mais notável. Às vezes perguntam-me: 'E a Amália?'. Amália era uma diva, eu estou a falar de mulheres", contou.
A mostra conta ainda com uma primeira parte, em que estão expostos objetos pessoais de Maria Lamas, livros que escreveu e traduziu, trabalhos de jornalismo, bem como o seu retrato pintado por Júlio Pomar, em 1954, e o busto em gesso esculpido em 1929 por Júlio de Sousa.
As fotografias expostas são praticamente todas originais, que se encontravam na posse da família.
Leia Também: Gulbenkian. Concerto foi invadido em dois momentos (músicos não cederam)