"É difícil um artista encontrar a sua verdade", disse o 'Mestre'
O 'Mestre' Manuel Cargaleiro, numa das suas últimas entrevistas, disse à Lusa que continuava a querer "transmitir algo de belo e de bom", numa obra de quase nove décadas, contadas desde os primeiros bonecos de argila, feitos na infância.
© Igor Martins / Global Imagens
Cultura Manuel Cargaleiro
"Há tanta coisa que eu gostaria de fazer", disse Manuel Cargaleiro, nessa manhã do passado mês de setembro, quando recebeu a agência Lusa na sua casa de Lisboa.
"Eu pego nos pincéis, começo a pintar e não sei o que vai acontecer. [...] Todos os dias pinto, se tiver oportunidade", afirmou então o pintor e ceramista que morreu hoje, em Lisboa, aos 97 anos.
Sobre a mesa, Manuel Cargaleiro dispunha os guaches e os pastéis. Ao lado, junto ao cavalete, tinha os óleos para as telas. Para si, as cores eram o maior problema. E assegurou: "É difícil um artista encontrar a sua verdade".
"As cores são todas lindas. O problema é qual se vai pôr ao lado. E eu, já quase com os olhos fechados, acerto", comentou, sorrindo, o mestre pintor e ceramista, que sempre assumiu a inspiração no azulejo português, e que se destacou pelas composições complexas, num jogo intenso de luz e cor.
O gosto por "fazer bonecos" de argila vinha desde a infância, vivida no Monte da Caparica, no concelho de Almada, para onde a família se tinha mudado de Vila Velha de Ródão, o seu concelho de origem. Manuel Cargaleiro ficava fascinado com a olaria que havia ao lado da estação de correios.
O artesão "transformava magicamente uma bola de barro numa peça perfeita", recordou o artista. Aquele trabalho maravilhou-o e quis aprender. "Eu não tinha muita habilidade, mas tinha vontade de realizar. Tive habilidade na cabeça. Eu imaginei as peças, e fazia um esforço para as concretizar".
Nessa olaria do Monte da Caparica começou a fazer experiências com vidros e tinta, e adquiriu o gosto pela cerâmica. Porém, apesar da paixão pelas artes, entrou para a Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Sobrepôs-se o gosto pela natureza. Mas a arte prevaleceria. Em 1949, ao fim de três anos, optaria pela Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa.
"A minha mãe apoiou-me sempre muito. O meu pai tinha medo do meu futuro. O sonho dele era ter um filho veterinário e outro agrónomo. Veterinário teve", disse o artista à Lusa, nesse dia de setembro. E acrescentou sobre os pais: "Viveram o suficiente para ver que eu não me enganei e que realizei algo em que eles tiveram muito orgulho. Essa foi a melhor recompensa que tive em relação ao meu trabalho e à minha família".
As suas primeiras pinturas abstratas, "Microscopic Compositions", provinham das imagens de células vegetais que via ao microscópio e reproduzia, assimilando a inspiração direta do mundo em seu redor.
Às primeiras exposições, em 1954, sucedeu-se uma bolsa de estudo em Itália. Daí foi para França, onde fixou residência em 1957 e onde viveu mais de metade da vida.
"Fiquei sempre muito ligado a França, mas também estive sempre muito ligado a Portugal. Eu vivia a vida artística do meu país. Mas a minha vida profissional tomou outro caminho e outros ritmos devido a França. Tive a possibilidade de trabalhar sempre com uma galeria, que me defendia", recordou à Lusa, lembrando os galeristas Edouard e Pierre Loeb, dois irmãos que o apoiaram, garantindo-lhe a subsistência nos tempos iniciais.
Com eles, Cargaleiro começou a expor a par de artistas como Max Ernst, Jean Arp e Camille Bryen, na Galeria Loeb com que teve uma relação forte, e que acreditou no valor da sua obra. Depressa foi reconhecido além-fronteiras, com exposições em cidades dos diferentes continentes.
Manuel Cargaleiro sonhou cedo um museu que fosse seu. Ele existe agora, em Castelo Branco, depois de constituída a fundação com o seu nome que cuida de um acervo de cerca de 10 mil obras, e que mantém o projeto do Museu da Cerâmica.
Há também a Oficina de Artes Manuel Cargaleiro, no Seixal, num edifício concebido por Álvaro Siza, para a divulgação e estudo da sua obra. Em Itália, foi criada a Fondazione Manuel Cargaleiro, assim como o Museo Artistico Industriale Manuel Cargaleiro, em Vietri sul Mare, Salerno.
E há também obras suas em espaço público, em diferentes cidades e instituições que vão da Organização Mundial do Trabalho, em Genebra, às estações de metro dos Champs Elysées, em Paris, e Colégio Militar, em Lisboa.
"Eu nunca quis ser muito conhecido. O que gostei sempre foi de trabalhar muito e de saber que havia pessoas que gostavam das peças" que fazia, disse à agência Lusa, sublinhando as suas preocupações de sempre: "É difícil um artista encontrar a sua verdade. Nós não sabemos. Eu não sei. Eu nunca fiz isto com uma intenção. Eu quis transmitir algo de belo e de bom, de positivo".
Manuel Cargaleiro entendia haver "duas correntes no mundo": "Há os artistas que pensam que não há nada a fazer, e descrevem o destrutivo, por exemplo o [pintor anglo-irlandês Francis] Bacon. Tem uma pintura triste, violenta, agressiva. E [o pintor e ceramista francês de origem bielorrussa Marc] Chagall, que tem uma pintura de esperança, de beleza, de mensagem. Eu coloco-me deste lado. Eu gosto de criar algo que dê força, que anime e dê esperança".
"Eu sou o pintor das cores. Eu vivo para as cores, e isso é o resultado de olhar muito para a natureza e para a vida."
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