"É possível ocupar um país sem usar uma arma, mostrar quem é o inimigo e as pessoas acreditarão porque é possível falsificar provas", disse o escritor, referindo-se à "propaganda e desinformação que são provavelmente tão perigosas como os mísseis e as armas nucleares, porque são bem produzidas".
O autor de 'A morte e o pinguim' conversou hoje com o colombiano Juan Gabriel Vasquez sobre 'Conflitos', numa mesa do Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos, em que os dois autores abordaram as diferenças e semelhanças entre as guerras que assolaram os respetivos países.
Na Ucrânia, novamente invadida pela Rússia em 2022, "as pessoas não dormem à noite", refugiando-se nos abrigos ou atentos ao toque das sirenes, mas, de manhã "vão para o trabalho, para os cafés e à noite aos teatros", alguns dos quais com "bilhetes esgotados com um mês ou dois de antecedência", contou.
Esta é, segundo o escritor, a forma de "resistir à guerra", mantendo "um estilo de vida normal", ainda que nas próximas décadas possa "aumentar a violência nas famílias, porque as pessoas tornam-se agressivas, radicalizadas".
Já a Colômbia, onde os conflitos com movimentos de guerrilha se estenderam por mais de 60 anos, é vista por Juan Gabriel Vasquez como "um país em regressão", onde "a classe política não consegue ultrapassar as suas disputas".
Para ambos, a distorção da realidade através da desinformação está determinar a forma como as classes políticas e as populações encaram os conflitos num tempo em que os escritores têm o papel de "provocar o debate público e convocar a sociedade civil para debater diferentes temas", defendeu o autor colombiano, que tem em 'A tradução do mundo' o seu mais recente livro editado em Portugal.
Andrey Kurkov considera mesmo que "nos tempos difíceis os escritores estão a tornar-se jornalistas", já que no seu país "a maioria dos escritores ucranianos não escreve ficção" desde 2022, escrevendo, em contrapartida, "livros de história".
Esse é, segundo Juan Gabriel Vasquez, a "forma de contrariar a versão oficial da história", veiculada pelos poderes interessados em veicular "um certo tipo de verdade sobre quem foi responsável pelo quê, sobre o que de facto aconteceu e deixando algumas perguntas por responder".
"Num mundo onde a maioria das pessoas obtém as suas informações através das redes sociais", as sociedades precisam de desenvolver "o talento para saber separar as verdades das mentiras", e aprender a "ler a realidade".
Mas a realidade "é que não o estão a conseguir" e "estão a cair em mentiras", lamentou, exemplificando com o facto de "mais de metade dos cidadãos dos Estados Unidos acreditarem que Donald Trump ganhou as eleições" ou de "uma grande parte da população de vários países ocidentais, em 2020, acreditar que a Ucrânia tinha um regime nazi".
Para o autor, cabe agora a todos assumir o papel de "verificadores de factos" e filtrar a informação, já que essa será "a única possibilidade de sobrevivermos como sociedade".
O Folio -- Festival Literário Internacional de Óbidos abriu portas no passado dia 10 e termina hoje, depois de mais de 600 iniciativas, distribuídas por várias curadorias, com a presença de vários escritores e ilustradores internacionais premiados.
O festival é uma organização da Câmara Municipal de Óbidos, da Empresa Municipal Óbidos Criativa, da Fundação Inatel e da Ler Devagar.
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