O projeto toma por referência textos de William Shakespeare e Thomas Bernhard, resulta de um "trabalho em curso" com a comunidade, e o título não surge "por acaso", antes espelha, "de certa forma", o percurso da atriz e encenadora, num momento em que a sua companhia volta a confrontar-se com a ausência de um espaço fixo de trabalho, como disse à agência Lusa.
Este facto provoca danos na atividade da Casa Conveniente, que a artista fundou em 1992 e dirige desde então, e voltou a impor-lhe interrogações sobre "como continuar, a nível pessoal e artístico".
A situação não é nova. Em 2014, quando tinha 48 anos e mais de duas décadas de trabalho da companhia, teve de abandonar as instalações do Cais do Sodré, quando esta área de Lisboa entrou "na moda", com as consequentes "especulações imobiliárias e turísticas", disse à Lusa. Passou então para um espaço cedido pela câmara para a Zona J de Chelas, onde realizou os festivais Zona Não Vigiada, mas o local foi fechado, com promessas de obras pela autarquia, ainda no tempo da gestão de Fernando Medina, que reduziu o local a tapumes. Desde então, a espera, e a necessidade de refletir a continuidade do trabalho.
'Minetti', de Thomas Bernhard, 'Rei Lear' de Shakespeare, e referências musicais como a obra de Johann Sebastian Bach são aliados nesse processo e continuam como pontos de partida para o novo espetáculo, no qual Mónica Calle reflete "sobre a solidão e o sacrifício do artista sem lugar".
Com a nova criação, a encenadora volta a cartografar a cidade, procurando "estabelecer relações com diferentes espaços, diferentes naturezas e dinâmicas" e as suas realidades sociopolíticas, pondo em cena um processo de trabalho sobre "o texto e a palavra", a "intimidade entre ator e público", premissas constantes no seu percurso criativo, como afirmou.
Para Mónica Calle o trabalho "passou, passa e passará sempre" pelo "envolvimento com a comunidade": "O teatro por si só não me faz sentido", realçou.
Nesta peça, Mónica Calle retoma o distintivo do seu percurso artístico: o "confronto entre o espaço interior do teatro com o exterior e a rua -- a arte e a realidade quotidiana".
"O artista só é um verdadeiro artista se for louco dos pés à cabeça, se se entregar totalmente à loucura, transformando-a no seu método radical. E o mundo que pense e escreva o que quiser", enfatizou, parafraseando a personagem "Minetti", da obra homónima do romancista, dramaturgo e poeta austríaco, um dos mais importantes escritores na segunda metade do século XX, na história da literatura de língua alemã.
O artista "não pode ser um medricas, é obvio" mesmo quando a sociedade lhe "cortou as pernas", lhe "tirou o palco" e o processou, arruinando-lhe a vida, frisou Mónica Calle, voltando a citar frases de "Minetti".
"A minha natureza de artista nada sofreu com essa sacanice, pelo contrário. Mas o esforço que isso custa: ser artista na mansarda [sótão] da minha irmã", concluiu, traçando um paralelismo entre aquela obra de Thomas Bernhard e o seu percurso artístico.
"Tenho vivido ciclos de 10 anos, ao fim dos quais, sou obrigada a mudar de espaço", acrescentou a artista, fundadora da Casa Conveniente, em 1992, quando ocupou uma loja no Cais do Sodré.
A falta de espaço próprio e a essência de "As mulheres que não veremos duas vezes" levam Mónica Calle a apresentar o espectáculo em espaços diferentes da cidade, uns mais convencionais, outros menos.
Assim, ZDB 8 Marvila, Drama Bar e CAL - Centro de Artes de Lisboa, todos parceiros do projeto, são os lugares onde "As mulheres que não veremos duas vezes" estará em cena, num total de 11 récitas.
Na ZDB 8 Marvila terá quatro sessões (de 02 a 05 de dezembro), outras tantas no Drama Bar (dias 09 a 12) e três no CAL -- Centro de Artes de Lisboa (de 22 a 24 de janeiro de 2025). Todas as apresentações começam às 19h00.
Criado e encenado por Mónica Calle, 'As mulheres que não veremos duas vezes -- ensaio sobre Minetti, retrato do artista quando velho' tem interpretação de Laura Garcia, Mafalda Jarra, Marta Felix e participação especial de Mónica Garnel. Na assistência de encenação está José Miguel Vitorino.
Produzida pela Casa Conveniente / Zona Não Vigiada, a peça conta com apoio financeiro da Fundação Calouste Gulbenkian.
No apoio à residência artística, na base do trabalho de pesquisa e criação da peça, estiveram o Teatro Oficina e a associação Largo Residências.
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