A guerra está longe de ser um tema inédito no cinema. As abordagens são várias, com os realizadores a procurarem mostrar os efeitos devastadores no indivíduo e no que significa tomar parte – enquanto soldado e ‘ferramenta’ de uma nação – num conflito. Estas não são questões alheias a 'Cartas de Guerra', um filme que procura ir mais além e mostrar um lado mais íntimo e emotivo do protagonista, António (Miguel Nunes), um médico destacado para Angola em plena Guerra do Ultramar.
‘Cartas de Guerra’, de Ivo M. Ferreira, é baseado no livro ‘D’este viver aqui neste papel descripto: Cartas da Guerra’ de António Lobo Antunes e tinha logo à partida a tarefa difícil de se distanciar do formato de biografia do escritor português. A obra do escritor português é composta por cartas reais, escritas à mulher Maria José (Margarida Vila-Nova). Mesmo sabendo disto, o espetador rapidamente se apercebe de que a personagem de António podia dizer respeito a qualquer um que tenha participado no conflito.
Outro aspeto que rapidamente saltará à vista é a qualidade de realização de Ivo Ferreira. Cada plano, movimento de câmara distribuição de luz dá uma imagem única ao filme. São frequentes as imagens captadas pela lente do realizador que teriam direito a serem admiradas por si só, como se de quadros se tratasse. O feito torna-se ainda mais respeitável tendo em conta que foi tomada a decisão deliberada de filmar ‘Cartas de Guerra’ a preto e branco, prescindindo assim da paleta de cores que o cenário luxuriante de África conferiria ao filme. A escolha – com propósitos estilísticos – serve também a temática do filme de apresentar a forma como António se sente com o conflito do qual faz parte.
António sabe que não voltará o mesmo da guerra e essa angústia acentua-se ao longo filme através da ansiedade mostrada nas cartas que envia
O sentimento de dever que de início parece acompanhar António na viagem para Angola, rapidamente dá lugar à saudade e ao conforto que sente quando próximo da mulher. O sentimento é exaltado nos próprios oficiais de que o protagonista se faz acompanhar. Se um deles sabe que é sua missão estar destacado e ter o mínimo de baixas possíveis, outro sucumbe à vontade de se ver fora dali e voltar para casa. Para António, o posto em que se encontra é como que um limbo: próximo do ‘inferno’ da guerra mas sempre com um olho posto no ‘paraíso’ através das cartas que envia à mulher.
As cartas, lidas sempre com ternura, mostram um lado frágil, emocional e profundamente apaixonado de um homem que (como ele próprio reconhece) mal fala com os que o rodeiam. António sabe que não voltará o mesmo da guerra e essa angústia acentua-se ao longo filme através da ansiedade mostrada nas cartas que envia.
A música dá sinal de si, acompanhando os momentos, emprestando sensualidade e gerando tensão de uma forma consistentemente positiva
A evolução do protagonista acaba por ser um dos pontos mais fortes do filme, num trabalho raro levado em conjunto pela representação sóbria e austera de Miguel Nunes e pela voz profunda e ternurenta de Margarida Vila-Nova. As sempre presentes cartas são o espelho desta dicotomia, não só deste protagonista em específico mas de todos os ‘Antónios’ que fizeram parte do conflito do Ultramar. Se à partida seria de esperar que estes homens fossem duros e violentos, as cartas manifestam o lado mais frágil e humano que estava ‘soterrado’ quase por necessidade.
Uma última palavra vai para o departamento sonoro, onde ‘Cartas de Guerra’ surpreende para logo a seguir desapontar. São frequentes as ocasiões em que a música dá sinal de si, acompanhando os momentos, emprestando sensualidade e gerando tensão de uma forma consistentemente positiva. Ainda assim, também surgem situações de grande confusão na mistura e edição de som, onde é difícil perceber o que dizem as personagens graças à música e ao ‘ruído’ da ação.
É inevitável ter a noção de que ‘Cartas e Guerra’ tinha logo à partida a tarefa difícil de centrar a ação na Guerra do Ultramar. Mesmo que se tenham passado mais de 40 anos, há feridas por fechar, cicatrizes por sarar e memórias que não conseguem enterrar o pesadelo de uma guerra que muitos (já na altura) colocaram em questão. Não obstante, o desafio é agarrado e ultrapassado por Ivo Ferreira, cuja presença no Festival de Cinema de Berlim o colocou debaixo dos holofotes do cinema.
Lidar com o tema nunca seria fácil mas o realizador mostra uma abordagem cheia de sensibilidade e emocionalmente carregada por uma relação de amor, saudade e paixão transversal a toda a sociedade e cultura portuguesas.