Em 2001, quando ‘A Sombra do Vento’ saiu para as bancas, poucos adivinhariam que Carlos Ruiz Zafón se iria tornar – 15 anos depois – num escritor com cerca de 30 milhões de livros vendidos em todo o mundo, distribuídos ao longo de oito novelas, adultas e juvenis. Um sucesso sem precedentes em Espanha, atribuído largamente a esse primeiro tomo da série Cemitério dos Livros Esquecidos.
‘O Labirinto dos Espíritos’ chegou a Portugal a 23 de novembro e é o desenlace da série de quatro livros, que inclui ‘O Jogo do Anjo’ (2008) e ‘O Prisioneiro do Céu’ (2011). O êxito das entregas criou um fenómeno de culto em torno da série, trazendo interesse renovado para as obras anteriores do autor.
Carlos Ruiz Zafón veio a Portugal para assinalar o lançamento e conversou com o Notícias ao Minuto sobre o final desta aventura com 15 anos, mas também sobre o mercado editorial, sobre a adaptação de livros ao cinema, sobre o futuro e sobre as singularidades de Lisboa.
Já passaram 15 anos desde o lançamento de 'A Sombra do Vento', um êxito sem precedentes em Espanha. Que lhe dizem agora os editores que não acreditavam no livro?
Não dizem nada. Nem é que não acreditassem, o que eles diziam, e o que pensava muita gente, é que era um livro impossível de vender em Espanha. Não porque não acreditassem no livro, muitas vezes os editores publicam livros que gostam e em que acreditam mas que acham que não vão ter êxito comercial ou, até, que não vão sobreviver no mercado. Lembro-me de que na altura muita gente em Espanha dizia que este livro era o livro menos espanhol possível, que era impossível vender este livro em Espanha, que era uma pena porque não ia funcionar. Acabou por ser totalmente o contrário. É certo que em Espanha custou mais e demorou mais tempo a entrar no mercado. São coisas do mundo editorial que são um lembrete de que às vezes uma pessoa pode dizer ‘isto funciona’ ou ‘isto não funciona’ mas na hora de verdade ninguém consegue predizer.
O leitor é quem decide, em última instância.
É o leitor que o decide e são fatores vários. Naquela altura a razão pela qual muitos editores diziam isso era porque ainda pensavam que Espanha ainda era a Espanha dos anos 70. O que não se tinham apercebido, e julgo que é isso que explica o fenómeno deste livro e de outros, é da incorporação de novas gerações de pessoas com educação universitária, muito mais jovens, que entraram no grupo de leitores e que tinham interesses muito mais similares a outros países à nossa volta. Pessoas com uma sensibilidade diferente e que era muito similar à sensibilidade de gente da mesma idade em França, em Inglaterra, na Alemanha, em Portugal e não à de pessoas com 65 anos que tinham um determinado perfil. Não havia ainda nenhum livro ou nenhum autor que por algum motivo tivesse chegado a esta faixa.
O Carlos já tinha vários livros juvenis.
Eu já vinha do mundo da literatura juvenil, já tinha quatro livros juvenis publicados e já vinha a notar uma mudança na sensibilidade dos leitores mais jovens e Espanha, sobretudo ao longo dos anos 80, foi-se colocando de novo na esfera da Europa Ocidental. É um país com as suas particularidades mas não está como nos anos 60 ou 70, em que Espanha era um satélite fora de órbita. Isso mudou.
E abre-se um mercado.
Abre-se um mercado porque a realidade do país mudou mas fazia falta algum fenómeno, alguma coisa específica que funcionasse como o catalisador para que as pessoas se apercebessem disso.
Os livros e a literatura como centro da trama – que acontece em toda a tetralogia – serão a razão de tanto interesse por parte do leitor?
Acho que não. Acho que aquilo que faz com que a experiência da leitura funcione em qualquer livro nunca é o tema. Os leitores ou os espectadores projetam a sua reação no que eles acreditam que lhes interessou, seja o tema ou o argumento. Mas o que faz com que gostemos de um livro nunca é o que trata a história, é a forma como ela está contada. Como leitores não nos apercebemos disso porque não sabemos como as coisas foram construídas. Quando uma pessoa vai ver um filme ou uma série, não sabe como foram feitos. As pessoas dizem ‘gosto desta série porque é de espiões’. Não, não gostam por ser de espiões, gostam porque está bem explicada, porque está muito bem construída e isso faz com que gostem. E, como cereja no topo do bolo, é de espiões. É como as histórias de amor. Histórias de amor que comovam há muito poucas, a maioria parece-nos melosas e sentimentais. Não quer dizer que sejam histórias más, é a forma como estão feitas. Um livro nunca é sobre o seu assunto, é sobre a forma como está escrito. Mesmo que não nos demos conta
O que é que sente quando escrevem que o Carlos é o autor espanhol mais lido desde Cervantes?
Na verdade, não penso nessas coisas porque são como estatísticas. Não têm importância nenhuma. Se sou mais ou menos, se sou o 14 ou o 28. O que importa para um escritor é ser lido. Que o trabalho chegue aos leitores e que os leitores o apreciem. Não é uma corrida de cavalos [risos].
Mas é um fator de pressão.
É um fator que afeta mas não tanto a mim, afeta mais a perceção que algumas pessoas podem sentir que têm de ter. Eu acho que o êxito não muda assim tanto a pessoa, muda a forma como é vista, como tem de ser julgada. Muda a forma como as pessoas te recebem.
É uma questão de expectativa, também.
É uma questão de expectativa no sentido em que faz com que todas as expectativas que há sobre uma pessoa sejam muito maiores e essa pessoa está sempre a competir consigo mesma.
‘O Labirinto dos Espíritos’ fecha a saga do Cemitério dos Livros Esquecidos, que com ‘A Sombra do Vento’ chegou ao patamar de sucesso de que falávamos. Agora que está terminado, sente pressão para o futuro ou sente-se liberto?
Sinto-me mais livre… Sentia pressão interna para poder terminar este ciclo e poder completá-lo como eu tinha projetado. Também me levou muito tempo, mais tempo do que eu tinha pensado. E há esta pressão: ‘tens de o terminar, tens de o terminar’… Todos os leitores estão à espera. ‘Mas quando chega o novo livro?’. Isto leva tempo.
O que importa para um escritor é ser lido. Que o trabalho chegue aos leitores e que os leitores o apreciem. Não é uma corrida de cavalosGeorge R. R. Martin está sempre a queixar-se disso.
Pois, então quando uma série está a ser feita as pessoas ficam cheias de pressa. ‘Despache-se’. Ele diz: ‘Olhe, calma, que eu tenho de fazer o meu trabalho à minha medida’. [risos] Mas bom, é uma pressão que no fundo é interesse. É uma pressão positiva, mau seria o contrário. As pessoas não quererem saber se há mais livros ou não. Essa pressão seria mais preocupante. [risos]
O Julián Carax [personagem transversal à saga], um escritor que se debate com as consequências do ato criativo na sua alma, é o seu alter ego, como já o disse antes. Chegado o final da tetralogia, houve essa mudança no Carlos como escritor e como pessoa?
Creio que sim. Quando comecei a escrever esta história tinha 33 anos, creio. Era uma pessoa que pensava em mim mesmo como jovem, mais ou menos. [risos] Passaram muitos anos, uma pessoa evolui, para o bem e para o mal, não sei. Há o desgaste… E acho que os livros evoluíram comigo. Era parte da ideia, eu sabia que isto ia levar tempo, embora não soubesse que iam ser tantos anos. Pensei em sete anos e acabou por ser o dobro. Embora eu tivesse um plano feito, a arquitetura na cabeça, as personagens foram evoluindo comigo.
Definiu 'O Labirinto dos Espíritos' como o livro que mais lhe custou escrever. Porquê?
Creio que por duas razões principais. Uma delas é porque a história em si já era muito complicada e eu não queria que parecesse complicada. Então grande parte do trabalho foi fazer com que o livro pareça infinitamente mais simples do que é. A ilusão da simplicidade é o truque mais difícil de conseguir. Outra razão é que, além complicação do livro, este era também aquele que encerra o ‘labirinto’, que completa o ‘edifício’. Como um relojoeiro que encaixa todas as peças de um relógio para que ele funcione. Era esta dupla dificuldade. E não queria transmitir esta dificuldade e complexidade para o leitor. Tornou isto tudo mais complicado do que o normal e por isso levou mais tempo.
Voltaremos a entrar no Cemitérios dos Livros Esquecidos?
Acho que não. O que tive sempre em mente eram quatro livros, o ciclo que tinha projetado era este, esta é a história. Se calhar, daqui a 15 anos apetece-me escrever um relato sobre uma das personagens. Não sei… não havia nada de mal nisso. Mas não é algo que tenha previsto, provavelmente não o faço, mas quem sabe?
O seu coração literário vai continuar por Barcelona?
Está no mundo dos livros, na narrativa. Eu estive estes anos todos a escrever sobre Barcelona, não por acreditar que é o centro do mundo. Nada disso. Essencialmente, acredito que todos os escritores, a dada altura, têm essa necessidade de voltar a casa metaforicamente, de contemplar a própria memória, a relação com o lugar em que se nasceu e a infância. Todos os escritores o fazem. Neste momento não sei, poderia voltar a Barcelona - como cenário é um lugar de possibilidades infinitas - mas não é o único e não tem de ser o meu. Se calhar, vou a outros lugares. Não sei, neste momento não sei.
Porque é que é tão perentório em não deixar os seus livros chegar ao cinema?
Porque não faz falta nenhuma. Primeiro, estes livros foram escritos para ser lidos. E esta série especialmente, o Cemitério dos Livros Esquecidos, é sobre livros, sobre a palavra escrita, sobre a linguagem literária, sobre os escritores, sobre os leitores, os editores, etc. Seria absurdo, não teria sentido tentar transformá-los noutra coisa só para serem mais populares. Para mim esta é a versão definitiva das histórias, está aqui. Não tenho interesse nenhum em ver uma alternativa. E o tempo útil de trabalho que tenho quero dedicá-lo a coisas novas, a coisas diferentes. Parece que se tornou obrigatório que todos os livros cheguem a filme. Para quê? Não tem mal, mas não há necessidade.
Fazendo o inverso, se perguntamos aos criadores de séries como os 'Sopranos' ou 'Breaking Bad' se querem passar três anos a escrever um livro sobre as séries eles vão dizer: ‘Que disparate, para quê? A versão de Breaking Bad já ali está, é aquela
O cinema tornou-se para os escritores numa espécie de patamar máximo de reconhecimento ou popularidade?
Sim, mas acredito que há uma grande ingenuidade a esse respeito. Acho que muitos autores não conhecem a indústria do cinema, não conhecem o processo e têm uma visão completamente ingénua e romântica da indústria. O que acontece é que em muitos casos também há uma expectativa comercial, uma expectativa de tornar os livros mais populares, para vender mais. E isso é legítimo mas...
Mas se um livro chega ao grande ecrã…
O livro morre. Por todos estes motivos, a mim parece-me um absurdo e acho que não tem sentido algum ou necessidade passar os meus livros para o cinema. Os leitores que querem conhecer esta história, têm de a conhecer nos livros. Não acho que passar ao cinema seja um patamar acima. É outra plataforma, há coisas boas e más. Não sinto interesse nenhum em fazê-lo, nem a dedicar um minuto do meu tempo a fazer algo que já fiz.
Pensa em trabalhar no cinema?
Penso sobre isso sempre que mo pedem. Conheço muitas pessoas que trabalham no cinema e na televisão… não o descarto. Já o fiz noutro tempo. Se o voltasse a fazer, o que não faria sentido para mim era ser um ‘argumentista de aluguer’. Houve uma época em que o fiz e por razões puramente económicas. Agora já não faz sentido fazer isso. Se me chegasse um projeto que para mim fosse indicado para a televisão e só funcionasse nessa plataforma, não teria problema algum em fazê-lo. Depende do projeto. Tem de fazer sentido e tem de ser feito pelas razões certas. Quando alguém faz alguma coisa pelas razões erradas, arrepende-se.
Há sítios em que dizemos ‘podia estar aqui, como podia estar noutro lugar’. Não, este lugar [Lisboa] é este e não é outroComo está a ser voltar a Portugal?
Estive cá há quatro anos e vi muito pouco. Agora estou cá há mais tempo e pude ver um pouco mais. Lisboa é um lugar fascinante. Ontem à noite fizemos um passeio num tuk tuk pela Lisboa noturna e o guia ia explicando coisas e realmente é uma cidade fascinante, tem magia. Muitas outras cidades da Europa parece que se foram diluindo, parecem-se cada vez mais umas com as outras. Há uma parte central que é como a Disneylândia por onde passeiam os turistas; aqui também há uma coisa um pouco assim, mas a cidade não está impregnada disso. E ainda tem esta luz do Atlântico. Tem uma personalidade muito intensa que não se diluiu. Há sítios em que dizemos ‘podia estar aqui, como podia estar noutro lugar’. Não, este lugar é este e não é outro. A arquitetura, a calçada, os edifícios, as fachadas. É tudo muito diferente. É um sítio encantador e espero voltar, mas para passear.