A opinião de Gonçalo Almeida: A insustentável leveza disciplinar

O espaço de opinião de Gonçalo Almeida no Desporto ao Minuto, no qual o ex-advogado FIFA analisa os temas que marcam a atualidade do ponto de vista do direito desportivo.

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Gonçalo Almeida
26/02/2021 18:50 ‧ 26/02/2021 por Gonçalo Almeida

Desporto

Gonçalo Almeida

Não será abusivo começar este artigo por desde logo concluir que, na esmagadora maioria dos casos em que um cidadão pensa na figura do árbitro de futebol, não lhe ocorra de imediato uma imagem propriamente imaculada, não obstante o papel preponderante que este desempenha no “desporto rei” e, a bem da verdade, em qualquer outra modalidade desportiva. Ao invés e de forma bastante injusta (seguramente na maioria dos casos), tal agente desportivo é comummente acusado de falta de isenção e até mesmo alvo de insinuações de corrupção, jornada a jornada, apenas por exercer uma atividade, também ela suscetível de erros, mas de enorme cariz passional. Com efeito, embrenhados por tal juízo recorrente por parte dos adeptos de um modo geral, a imprescindibilidade destes agentes desportivos para o saudável funcionamento de qualquer competição desportiva acaba por cair inevitavelmente em esquecimento. A própria exigência física e técnica colocada a quem arbitra e que tem de tomar decisões imediatas, por vezes sob forte pressão mediática, sem acesso a imagens televisivas e muito menos a repetições em slow motion, raramente é considerada na hora de avaliar a sua prestação.

Arbitrar um jogo que desperta paixões sem paralelo, constitui, efetivamente, uma função deveras exigente, ingrata, e para muitos, percebe-se, pouco ou nada apetecível. Com efeito, sujeitarmo-nos à ira quase permanente de dirigentes, treinadores, jogadores e adeptos (entre outros), afigura-se algo difícil de aceitar. E é precisamente a esse contexto inaceitável que dedico este artigo, a bem da modalidade, do Desporto e da própria Sociedade.

Salvo melhor opinião, algo verdadeiramente inacreditável a que assistimos constantemente no futebol do nosso burgo, são as ofensas publicamente proferidas por agentes desportivos, dos quais, infelizmente, se destacam dirigentes e treinadores de futebol, independentemente da razão que lhe possa assistir, que não vem ao acaso. Nesse contexto e se prestarmos particular atenção a estes últimos intervenientes, facilmente constatamos que algo vai muito mal no futebol nacional.

Mas esse mal a que me refiro, continua a ter, de forma absolutamente inexplicável, aparente amparo por parte da justiça desportiva. A título exemplificativo e para que o leitor melhor compreenda o estado da nossa nação futebolística, ainda recentemente, na sequência do embate entre o FC Porto e o SC Braga para a Taça de Portugal, o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol (FPF) decidiu punir o treinador Sérgio Conceição pelo fato de este ter abandonado os limites da sua área técnica e se ter deslocado até ao meio campo a gesticular, protestando contra uma decisão tomada pela equipa de arbitragem, comportamento que lhe valeu a expulsão, com a aplicação de uma coima no montante irrisório (em termos futebolísticos) de € 1.020, não existindo sequer lugar a qualquer suspensão da atividade desportiva. Mas também o treinador Rúben Amorim, viu ser-lhe aplicada pelo mesmo órgão federativo uma suspensão de 6 dias e condenação no pagamento de uma multa no montante de € 3.825, desta feita na sequência da sua expulsão no decorrer do clássico frente ao FC Porto, por “lesão da honra e da reputação” de um dos membros da equipa da arbitragem de Luis Godinho.

Por último e para ser politicamente correto, até porque nestas coisas do futebol há sempre quem confunda clubismo com independência intelectual ou profissionalismo, eis que não poderia escapar o atual treinador benfiquista, o qual, na temporada de 2012/13 e na sequência de um jogo entre o SL Benfica e o FC Porto, considerou que a sua equipa tinha sido derrotada “pela terceira equipa, a de arbitragem”. Tal declaração valeu-lhe apenas 15 dias de suspensão e a aplicação de uma multa no montante de € 1.500 (!!!).

Fora do âmbito dos “castigos” aplicados a funcionários dos denominados “três grandes” e para que o leitor atente à infeliz transversalidade deste fenómeno, relembro, entre muitos outros exemplos, o episódio em que o ex-presidente do Vitória Futebol Clube, Vítor Hugo Valente, após tecer gravíssimas acusações contra o árbitro Fábio Veríssimo em plena sala de imprensa do Estádio do Bonfim, em Maio de 2019, foi suspenso por 45 dias e obrigado a pagar uma multa no montante de € 5.740. Já o presidente da Boavista FC, Vítor Murta, no âmbito do jogo com o Gil Vicente FC no passado dia 5, após o golo que deu a vitória à equipa minhota ter sido analisado pelo VAR e validado pelo árbitro, acusou este último de incompetência por não ter assinalado uma alegada falta no lance do golo, comportamento esse que culminou com a aplicação de uma pena de suspensão de atividade pelo período de 15 dias e de uma coima no montante de € 561. Resta sublinhar que em ambos os casos, as multas terão sido, muito provavelmente, liquidadas pelas respetivas Sociedades Desportivas.

Enfim, os (maus) exemplos são tantos e de tal forma transversais (salvo boas e raras exceções) no universo futebolístico português, que me eximo de apontar mais casos flagrantes de indisciplina e, não menos preocupante, da aparente impotência por parte de quem tem a obrigação estatutária de zelar pelo cumprimento de regras que visam proteger a modalidade e respetiva indústria.

Neste contexto e para que o leitor tenha uma noção mais prática acerca das referidas sanções disciplinares, a título meramente exemplificativo e entre outras normas sancionatórias com diferentes molduras penais, o atual Artigo 140.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela Liga Portugal dispõe que, por ocasião dos jogos oficiais, os dirigentes que protestarem ou adotarem uma atitude incorreta para com os elementos da equipa de arbitragem são punidos com a sanção de suspensão a fixar entre o mínimo de oito dias e o máximo de três meses e, a título acessório, com a sanção de multa de montante a fixar (entre o mínimo de 5UC/€ 510 e o máximo de 15 UC/€ 1.530). Em casos de reincidência, os limites mínimo e máximo da sanção acessória de multa são elevados para o dobro.

Ora, perante tal permissivo quadro sancionatório, não conseguimos desviar o olhar da realidade que se vive naquela que é reconhecidamente a melhor liga de futebol do mundo, a Premier League. Passando de imediato a exemplos práticos, estávamos em 2014, quando José Mourinho foi (uma vez mais) alvo de uma multa aplicada pela Federação Inglesa de Futebol (The Football Association), na sequência de alegações produzidas após o empate do seu Chelsea FC frente ao Southampton FC e em que o treinador português reclamou uma grande penalidade que terá ficado por assinalar a favor da sua equipa. Tais declarações, verdadeiramente banais cá por “casa”, valeram ao nosso concidadão a aplicação de uma multa no montante de £ 25.000. Já em 2018, coube a Rafa Benitez, à época treinador do Newcastle United FC, ser-lhe aplicada uma multa de £ 60.000 pelo simples fato de - note-se bem o rigor imprimido, mas ainda assim correto, em meu entendimento - ter tecido elogios ao árbitro nomeado para a partida contra o Crystal Palace FC, o senhor Andre Marriner. Isto porque, segundo o Regulamento Disciplinar da Federação Inglesa, os agentes desportivos, incluindo obviamente treinadores, encontram-se impedidos de proferirem qualquer tipo de comentários, sejam estes de natureza negativa ou positiva, a respeito das equipas de arbitragem, antes, durante e até mesmo após os jogos, constituindo tal violação uma infração grave. E note-se que a abrangência desta norma disciplinar não se limita aos tradicionais meios de comunicação social, sendo extensível a qualquer outro, nomeadamente, às redes sociais.

De regresso à distante (eufemisticamente falando) realidade portuguesa, não obstante a existência de claras regras no nosso ordenamento jurídico desportivo visando acautelar este tipo de infrações, a questão, s.m.o., prender-se-á com o fato da moldura sancionatória não ser suficientemente dissuasora. Ora, torna-se então absolutamente necessário, por urgente e relevante, proceder-se à alteração de tal regime disciplinar, tornando-o mais rígido, abrangente e, claro está, agravando-se o seu quadro sancionatório.

Neste capítulo, e perante os anticorpos instalados no próprio seio da família do futebol, daí se destacando um inexplicável autismo clubístico, caberá eventualmente ao Estado, em última instância, sensibilizar os diversos agentes desportivos acerca do impacto negativo de tais comportamentos e, em simultâneo, proceder à implementação de alterações legislativas mais abrangentes, pragmáticas e que introduzam sanções verdadeiramente eficazes com vista a pôr cobro a tais condutas altamente censuráveis e que em muito denigrem a imagem do futebol, da sua indústria e, inclusivamente, em casos extremos, instam contra a própria ordem pública, nomeadamente ao se ousar insultar, coagir e ameaçar uma classe essencial para o futebol como é a da arbitragem.

Isto, repito, a bem do futebol, do Deporto e da Sociedade.

Nota: Os meus sinceros agradecimentos à equipa de Direito do Desporto da “Almeida, Dias e Associados”, nas pessoas da Dra. Maria Nunes da Fonseca e do Dr. António Vicente, pela sua inexcedível e preciosa contribuição para esta rúbrica.

Leia Também: A opinião de Gonçalo Almeida: O Futebol, a TV e as medidas que tardam

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