No que ao futebol diz respeito, as últimas décadas foram de claro desenvolvimento económico-financeiro, realidade que necessariamente se repercutiu a nível competitivo. Mas se por um lado a bitola física, técnica e tática evoluiu tremendamente, proporcionando jogadores mais completos, embora, alegadamente, menos criativos, é igualmente verdade que, atualmente, um jogador profissional de futebol (sem necessidade de nos reportarmos ao nível da “Champions”) sofre uma carga competitiva cada vez mais exigente, quer a nível físico, quer mental, por oposto a uma margem de erro cada vez mais reduzida.
Tal realidade, diretamente relacionada com o calendário internacional de jogos da FIFA, bastante sobrecarregado (incompreensivelmente, se abordarmos a questão desde o ponto de vista estritamente desportivo) e não raras vezes alvo de críticas acérrimas por parte de vários stakeholders do futebol mundial (treinadores, clubes e, claro está, jogadores), é potencialmente perturbadora de um desejável equilíbrio entre saúde e desempenho desportivo, algo que acaba por se repercutir ao nível da atratividade competitiva.
A título normativo, a regulamentação FIFA relativa ao referido calendário e à inerente obrigação transversal por parte dos clubes de cederem os seus jogadores às respetivas seleções nacionais, consta do Anexo I do Regulamento do Estatuto e Transferência de Jogadores da FIFA (RSTP), tendo sido transposta para o nosso ordenamento jurídico por intermédio do Regulamento do Estatuto, Categoria, Inscrição e Transferência de Jogadores da Federação Portuguesa de Futebol, em conformidade com a Lei 54/2017 (Cf. Artigo 11.º, alínea d), a qual estatui como dever dos clubes “[…] permitir que os praticantes, em conformidade com o previsto nos regulamentos federativos, participem nos trabalhos de preparação e integrem as seleções ou representações nacionais”. Já na perspetiva do jogador, também este é obrigado, salvo raras exceções e perante eventuais sanções de natureza disciplinar, a responder afirmativamente a uma determinada convocatória, desde que realizada de forma regular, obrigação esta igualmente patente na Lei 54/2017 (Cf. Artigo 13.º, alínea b) no âmbito dos “deveres do praticante desportivo”.
Ora, atendendo ao contexto pandémico que vivemos, a FIFA, através da Circular n.º 1735, de 1 de Outubro de 2020, elaborou um protocolo intitulado “FIFA’s return to Football – International Match Protocol”, através do qual, em perfeita simbiose com as diretrizes da Organização Mundial de Saúde, introduziu um conjunto de procedimentos tendentes à salvaguarda da saúde e segurança de todos os agentes desportivos, criando algumas exceções quanto à obrigação dos clubes libertarem os seus jogadores e destes se apresentarem ao serviço das respetivas seleções nacionais. Tal obrigatoriedade ver-se-á então arredada sempre que na cidade ou no país do clube que cede o jogador ou ainda no local onde se dispute o jogo internacional: (1) exista um período obrigatório de pelo menos cinco dias de isolamento ou (2) existam restrições a viagens entre tais regiões, ambas as exceções condicionadas à inexistência de uma isenção específica por parte das autoridades locais para os jogadores ou comitivas em questão.
Tais esforços, deveras importantes no sentido de minimizar o impacto da Covid-19, são ainda assim insuficientes na perspetiva dos clubes, os quais entendem que continuam a colocar os seus atletas em perigo na sequência de uma exposição ao risco de infeção, a que acrescem críticas cada vez mais audíveis por parte dos jogadores, principalmente no que diz respeito ao excessivo desgaste físico a que estão sujeitos em função do curto tempo de descanso entre partidas.
Nesse contexto, tem a Federação Internacional de Jogadores Profissionais de Futebol (FIFPro) procurado sensibilizar os vários intervenientes estratégicos no futebol, para a necessidade de proteger os principais ativos desta atividade, os próprios jogadores. Tendo sugerido um conjunto de medidas, tais como a pausa obrigatória de quatro semanas no final de cada época desportiva, uma pré-época com a duração mínima de quatro semanas para efeitos de recuperação dos índices físicos ou mesmo a extensão da regra das cinco substituições até final de 2022. Em paralelo, a FIFPro comprometeu-se a desenvolver uma plataforma online de monitorização da carga de trabalho dos jogadores, abrangendo as pausas da época, o impacto das viagens e das lesões sofridas.
Enfim, vivem-se tempos preocupantes, mas igualmente desafiantes, a que o futebol obviamente não escapa. E é precisamente em momentos como este, perante adversidades, que se torna imperativo ser-se solidário e construtivo. E sendo certo que o número excessivo de jogos (ainda) não foi alvo de uma necessária e urgente reforma, é igualmente inegável que o futebol tem sabido, ainda assim, sobreviver e adaptar-se a uma realidade que tem tanto de incerta, como de indesejável.
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