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"Quero ser campeã do UFC. Quem sobe à jaula comigo tem de travar guerra"

Jacqueline Cavalcanti entrou para a história do desporto nacional ao tornar-se a primeira mulher portuguesa a assinar pelo UFC. Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, a lutadora portuguesa de 25 anos detalhou o percurso até conseguir o título de campeã de peso-leve da LFA no passado mês de abril.

"Quero ser campeã do UFC. Quem sobe à jaula comigo tem de travar guerra"

A história já está feita, mas ainda há mais por conquistar. É com este lema que Jacqueline Cavalcanti se apresenta no mundo do MMA (Mixed Martial Arts, ou artes marciais mistas em português), já às portas do tão desejado UFC (Ultimate Fighting Championship). A lutadora de 25 anos tornou-se a primeira mulher portuguesa a assinar contrato na maior competição de MMA e concretizou um dos sonhos de carreira, mas promete não ficar por aqui.

Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Jacqueline Cavalcanti não deixou nada por dizer e, além de ter abordado todo o seu percurso marcado por conquistas, projetou o futuro, estabeleceu metas maiores e deixou garantias dignas de registo.

A atleta portuguesa nasceu no Brasil e começou a competir em território luso logo desde os 11 anos, passando por modalidades como muay thai, kickboxing, judo, capoeira e taekwondo, até chegar ao patamar em que se deparou com uma junção de tudo isso. 

No campo da teoria e da ambição, Jacqueline Cavalcanti soube sempre como 'fintar' o preconceito em relação à modalidade - até mesmo na associação à masculinidade do desporto - e rejeitou o discurso do medo de competir na 'cage' (jaula, em português), numa conjetura de atributos que a levou até ao patamar atual.

O título de campeã de peso-leve da LFA (Legacy Fighting Alliance) que carrega consigo desde o dia 21 de abril acabou por ser a ambicionada janela de oportunidade para atingir o UFC, competição que afirma taxativamente querer vencer. Jacqueline Cavalcanti chega mesmo a declarar "guerra" a qualquer adversária que suba consigo ao terreno de luta, além de pedir uma reflexão às pessoas na interpretação do que significa... lutar.

 Sempre ambicionei era chegar à UFC, estar dentro daquela 'cage' [jaula em português] e poder mostrar todo o trabalho para ali chegar. Nada foi dado, foi sempre com base no meu esforço.

Na altura em que dava os primeiros passos nas mais diversas modalidades que praticou até chegar ao MMA, o que sentia quando via outras pessoas a combater, através do ecrã, como acontecia na WWE (World Wrestling Entertainment)?

Desde pequenina sempre quis fazer algum tipo de artes marciais. Fazer disso profissão essencialmente. Lembro-me que quando tinha acabado de chegar a Portugal [em 2008] via sempre a WWE, adorava assistir, mesmo sabendo que aquilo era mais à base da palhaçada e do teatro. Depois quando via a parte da luta na MMA, assistia e sabia que um dia iria lá estar. Precisava de treinar, ter mais conhecimentos, rodear-me de pessoas que alcançaram ou queriam alcançar algo semelhante. Mas sabia que um dia iria conseguir. Sempre trabalhei para isso. Hoje em dia parece fácil falar, sobretudo quando já alcançámos o que queríamos. O que sempre ambicionei era chegar à UFC, estar dentro daquela 'cage' [jaula em português] e poder mostrar todo o trabalho para ali chegar. Nada me foi dado, foi sempre com base no meu esforço.

Não houve ninguém na família que tenha tentado impedi-la de abraçar esta aventura?

Não. Os meus tios e a minha mãe adoravam artes marciais. Era algo me foi incutido já desde pequena. Tinha um tio que era mestre de capoeira, tinha tios que, no convívio de um churrasco no quintal, ficavam ali a brincar aos socos. As artes marciais estiveram sempre presentes, completavam-nos e traziam-nos felicidade. Quando souberam que eu estava a treinar e que aquilo estava a dar alguns frutos, todos ficaram felizes. Tive o apoio sobretudo da minha mãe, que é a minha maior fã de todas (risos). Quer que eu chegue o mais longe possível.

Notícias ao Minuto Lutadora de 25 anos passou por modalidades como judo, capoeira, taekwondo, muay thai e kickboxing até chegar ao MMA. © LFA
 

Quais as diferenças que foi sentindo ao passar pelas mais diversas modalidades até chegar às artes marciais mistas?

Tudo [que pratiquei] aconteceu individualmente. Foi um processo. Só que depois cheguei à conclusão que, mesmo gostando de muay thai, por exemplo, não me completava a 100%. Sempre que olhava para o MMA sentia aquele impulso de querer saber e aprender algo mais. Consegui fazer essa 'migração' em 2018 quando tinha 20 anos. Comecei a competir muitas vezes fora. No MMA fiz apenas uma luta em Portugal. Era para ter outra, mas foi cancelada por causa da minha adversária. De resto só fiz lutas no estrangeiro, em países como França, Estados Unidos da América e Emirados Árabes Unidos.

Podemos considerar que vale tudo no MMA ou há muitas restrições que não estão aos olhos do espectador?

Há muitas restrições. Já não vale tudo. Há bastantes regras que antes não existiam. Houve sempre regras e essa lógica do 'vale tudo' nunca foi bem assim. Nunca pudemos enfiar dedos nos olhos de outra pessoa, atingir as partes genitais, puxar cabelos. Nada disso valia.

O que mudou ao longo dos últimos anos?

Antes não existiam tempos de luta. As pessoas podiam ficar a lutar durante quase uma hora. Com as regras atuais há tempos definidos. Outra regra é que antes podiam haver pontapé à cabeça e agora, apesar de ainda ser possível, depende do evento. No UFC isso já não pode acontecer se o adversário estiver com três apoios no chão, como os joelhos e uma mão, por exemplo.

Chegaram a dizer que MMA nem era um desporto. Querendo ou não, em Portugal está em fase de crescimento e as pessoas não conhecem. Quando conhecem é pelo lado negativo. Olham para aquilo só como duas mulheres ali a lutar e que não faz sentido.

Concilia a prática desta modalidade com outra profissão?

Sim, atualmente sou personal trainer. Consigo dar aulas e consigo treinar. Articulo os meus horários de treinos com os dos clientes, o que é mais prático para encaixar. Antes disso, já fui empregada de mesa e já tive outras profissões em que entrava de madrugada, o que dificultava a parte dos treinos no MMA.

Quantos treinos faz por semana?

Treino duas a três vezes por dia, desde as artes marciais ao fortalecimento [muscular]. Treino em Lisboa, na Reborn Fight Team, com o Artur Lemos, que me diz aquilo que devo treinar um pouco mais. O meu físico treino faço em Almada, onde vivo.

Há alguma referência que tenha desde infância, que visse e quisesse, de certa forma, imitar um dia?

Quando fui começando no MMA não havia ninguém que eu conhecesse muito. Mas lembro-me que um treinador comparou-me à Cris Cyborg e eu perguntei quem era a uma colega minha. Ela perguntou-me admirada como é que eu não conhecia. Depois fui pesquisar e vi que [Cris Cyborg] era considerada uma das melhores da altura. A agressividade que ela tinha incentivou-me. Além disso, era uma mulher. Sendo uma mulher, conseguimos perceber que é possível. Não é algo que só os homens conseguem ou que seja só praticado por homens. A partir daí deu-se aquele primeiro clique. Posso dizer que não tenha propriamente um ídolo, mas há pessoas que me inspiram como referência em si, como a [Jessica] Borga, o Anderson Silva e a Amanda Nunes, que por tudo aquilo que tem conseguido é de realçar.

Já alguma vez lhe disseram diretamente que MMA é para homens e não para mulheres? Como se sente ao ouvir isso?

Já, já. Claro. Nem ouvi tanto que fosse só para homens. Chegaram a dizer que isto nem era um desporto. Querendo ou não, em Portugal é um desporto em fase de crescimento e as pessoas não conhecem. Quando conhecem é pelo lado negativo. Olham para aquilo só como duas mulheres ali a lutar e que não faz sentido. Mas creio que nós, lutadores, que gostam do MMA em si, podemos dar a conhecer e mostrar que não são só duas mulheres ou dois homens 'brutamontes' a subir ao ringue para andar à porrada. É preciso dar a entender que há ali muita dedicação da vida pessoal, muito treino e outras coisas por trás daqueles 10 ou 15 minutos de luta. Às vezes há três ou quatro meses de treino focados para uma determinada data, com um adversário e uma luta em específico. É algo que deve ser para admirar.

Acabei de assinar com o UFC e sei que as pessoas já conseguem olhar para mim e dizer 'Uau, és a primeira mulher em Portugal a chegar lá'. Este momento é só a onda. É aproveitá-la.

É essa a melhor resposta para os que só veem o lado negativo da modalidade?

Creio que sim. Aquilo que tento explicar às pessoas que não conhecem é mostrar um pouco do meu dia a dia. Depois conhecem-me e perguntam como é possível eu lutar. Não me imaginam em artes marciais por dizerem que sou uma pessoa meiga, comunicativa e até mais inteligente (risos). As pessoas ficam com aquela noção que as lutas são só para pessoas sem escolaridade, que não têm futuro e que apenas entram para aquele mundo. É muito diferente disso, na realidade. As pessoas começam a perceber que é necessário investimento em cada desporto, já sem tanto a ideia de que é só para pessoas sem futuro.

Como se sente ao ser uma referência entre as lutadoras portuguesas e mundiais?

Sinto-me muito bem. Sinceramente, sei que este momento é só um momento. Agora acabei de ser campeã da LFA, que é considerado um dos maiores eventos dos Estados Unidos da América, acabei de assinar com o UFC e sei que as pessoas já conseguem olhar para mim e dizer: 'Uau, és a primeira mulher em Portugal a chegar lá'. Este momento é só a onda. É aproveitá-la. Posso passar um pouco mais de mim, poque sei o que tive de abdicar para chegar até aqui. Sendo mulher, todos sabem que não é tão fácil, sobretudo nesta modalidade em que estou, em que as coisas não são vistas com bons olhos. É um tipo de desporto que tem muito futuro, está a crescer bastante noutros países.

Notícias ao MinutoJacqueline Cavalcanti derrotou Melissa Crowden na luta pelo título de LFA, na categoria bantamweight, no passado dia 21 de abril.© LFA  

Há mais nomes no MMA que sejam de referência em Portugal e que queira destacar?

Sem dúvida. Aponto especialmente o nome da Mafalda Carmona, que é minha colega de treino e sei que ela é uma das principais atletas que pode mesmo chegar ao UFC. Vai lutar amanhã em França e se fizer mais uma ou duas lutas, pode ter a mesma oportunidade. Iniciámos mais ao menos o mesmo tempo a fase do MMA e agora olho para o nosso crescimento como algo parecido. Eu sabia que indo para os EUA talvez tivesse a oportunidade de lutar na UFC ou assinar um contrato um pouco mais rápido. Estando lá, as pessoas conseguem ver-nos, não é só ouvir. Dá para mostrar o nosso trabalho. Ir para lá podia abrir uma porta ou uma janela para chegar onde eu tanto queria e desejava. Fui lá no ano passado só com o objetivo de treinar, não conheci praticamente ninguém em Los Angeles. Falava com a Piera [Rodríguez], que tem o mesmo agente. Ajudou-me imenso e percebi que vencendo uma luta da LFA facilitava a entrada na UFC. Perguntei quem era a campeã da minha categoria e um dos dirigentes da LFA disse que o cinturão estava livre porque a mais recente campeã tinha ido para a UFC e eu pedi uma oportunidade na altura. Ele lançou aquele típico sorrisinho e disse-me: 'Vamos ver'. Voltei para Portugal, lutei por mais um título mundial, que foi o SCC [Strikers Cage Championship], e depois falei com ele novamente. Aquilo ficou marcado para fevereiro [de 2023], fui logo para os Estados Unidos da América no dia 5 de janeiro, mas infelizmente a adversária lesionou-se, o que acontece nas lutas, naturalmente. Era preciso encontrar outra adversária para aquela data. Ninguém aceitou. Esperei até ao dia 21 de abril. Disse ao meu agente que não ia voltar para Portugal, porque sabia que tinha a oportunidade de lutar pelo cinturão. Senão a minha ida para lá teria sido em vão. Graças a Deus correu tudo bem e trouxe o cinturão.

Nunca sentiu medo durante um combate?

Durante o combate nunca senti medo. Quem olha para nós pensa que um lutador já deve ter um parafuso a menos, ou dois ou três. É possível sentir receios, mas nunca é medo de um adversário. É mais na base de pensarmos se vamos conseguir fazer o que desejamos ou se alguma mão não acerta bem e há um desmaio. Diria que esses são os maiores receios dos lutadores. Nunca pelo adversário, que é uma pessoa como outra qualquer que já conhecemos por termos visto outras lutas. Tem duas mãos, duas pernas, uma cabeça... Pensamos mais na nossa prestação e no que vai acontecer naquele momento, mas nunca é o medo de ir à luta.

Não nos adianta estarmos sentados só a reclamar e continuarmos no mesmo sítio, sem sair de casa para procurar algo melhor. É assim no desporto e na vida pessoal. Temos de investir pessoalmente em nós.A entrada no UFC já reservou alguma data específica para começar a combater?

Ainda não há uma data prevista. Normalmente o que acontece é que, no UFC, eles não assinam contratos como o meu de agora. Por norma, a maior parte das pessoas ou entram por uma liga em que a boa prestação pode dar contrato para três ou quatro lutas, ou entram em contexto de última hora quando alguém se lesiona. Há quem agarre com unhas e dentes mesmo com uma preparação de uma semana ou um mês. No meu caso, nada disseram, pode ser daqui a dois ou três meses.

Estar no UFC implica uma mudança definitiva de país?

Não digo definitiva. Gostaria, sim, de fazer um campeonato nos EUA, mas não sei como vai ser a minha vida. Portugal é Portugal. Não se compara com nenhum país. Por mais tempo que possa passar lá [nos EUA], lembro-me sempre com muitas saudades de Portugal (risos). Devemos valorizar muito o nosso país.

Depois de atingir o sonho do UFC, há algo mais por concretizar?

Quero ser campeã do UFC, mas atenção. Quero ser uma campeã dominante, poder defender o meu título por várias vezes e não ser só a campeã do momento. Sei que há uma trajetória que vou ter de passar, é passo a passo. Há que fazer boas lutas e sair delas sempre com a vitória. Se houver derrotas, isso faz parte do nosso desporto, acontece... Vou dar sempre o meu melhor em tudo o que tiver pela frente. Podem ter a certeza que quando estiver lá em cima [na jaula] será sempre uma guerra. Quem vai para lá comigo nunca tem trabalho fácil. Seja na derrota ou na vitória, vão ter sempre de travar uma grande guerra. Como portugueses, há que acreditar em nós. Temos de trabalhar por aquilo que queremos. Não nos adianta estarmos sentados só a reclamar e continuarmos no mesmo sítio, sem sair de casa para procurar algo melhor. É assim no desporto e na vida pessoal. Temos de investir em nós.

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