"Adormeci durante cinco ou dez minutos. Quando acordei, estava cego"

O atual campeão mundial e europeu de judo paraolímpico é português. Miguel Vieira esteve seis anos sem praticar a modalidade, após cegar subitamente durante um dia de trabalho. Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, conta todas as dificuldades que teve de superar para se tornar um atleta de alta competição.

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David Silva
22/09/2023 07:55 ‧ 22/09/2023 por David Silva

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Miguel Vieira é campeão mundial e europeu de judo paraolímpico e tem uma verdadeira história de superação. Ficou cego, de um momento para o outro, aos 20 anos, num dia normal de trabalho. Mas esse acontecimento não o demoveu de ter uma carreira (profissional e desportiva, ao mais alto nível), uma licenciatura e uma família. O seu destino poderia nem sequer ter passado por Portugal, se não fosse a cegueira.

O atleta tornou-se recentemente o primeiro embaixador da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde para dar o seu exemplo e tentar alterar a mentalidade de muitas pessoas. Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Miguel Vieira conta um pouco do seu percurso.

Ficou cego em dez minutos

A sua vida mudou num dia aparentemente normal, enquanto trabalhava como fiel de armazém, em Angola. "Não diria que tenha sido um caso de ignorância. Não esperava. Sempre dei importância e sempre cuidei do meu bem-estar. Fiz o turno da manhã todo normalmente. Entretanto, fui para o almoço e descansei um pouco, cinco ou dez minutos. Adormeci. Quando acordei, estava cego. Recorri ao seguro de saúde e fiquei internado cerca de oito, nove meses", relembra. 

Miguel ficou com cegueira total. Consegue perceber quando há luz, mas não distingue formas. "Não tinha sinais que apontassem para cegueira. Usava óculos, sim senhor, mas só vim a perceber melhor tudo através do meu médico, em Portugal, que me operou várias vezes. Ele disse-me que já devia ter nascido cego. 'Porque é que vi até aos 20 anos?'. É algo que só a ciência poderá responder... Nós não conseguimos, por vezes, entender o mistério de Deus. Às vezes, há coisas que só Deus pode responder", disse o judoca.

O problema de saúde levou-o a procurar tratamento no nosso país. Até aí, Miguel Vieira não tinha nenhuma ligação com Portugal. Adquiriu, mais tarde, a nacionalidade portuguesa. "Em novembro do mesmo ano, 2005, venho para Portugal de junta médica. Caí cá de paraquedas, mas caí em boa terra", gracejou. 

Reencontro com o judo (e de que maneira)

Miguel Vieira já pratica judo desde pequeno. Começou com "14 ou 15 anos", sem conseguir precisar exatamente, por influência de um irmão mais novo. Quando cegou, deixou de praticar a modalidade. "Fiquei de 2005 a 2011 sem praticar judo. Tinha uma vida muito ocupada a trabalhar e a estudar. Quando me foi negado o acesso à universidade, procurei um clube. Não sabia nada sobre o judo para cegos. Por curiosidade, quis entrar num clube só para manutenção física. O 'bichinho' estava lá dentro e renasceu. Experimentei no clube onde ainda estou, o clube Judo Total, com o meu treinador e atual selecionador Mestre Jerónimo Ferreira", recorda.

Desde então, tem vindo paulatinamente a melhorar. 2023 tem sido o pináculo da carreira no judo, com um ouro mundial e outro europeu. Miguel Vieira sagrou-se campeão mundial de judo da categoria -60kg J1 nos Jogos Mundiais da Associação Internacional de Desportos para Cegos (IBSA), em agosto. Mas os louros foram colhidos com muito trabalho.

"Foi complicado. No judo para invisuais, em Portugal, fui o primeiro a medalhar, a ir um campeonato da Europa, do Mundo, primeiro nos Jogos Paralímpicos. Tudo é possível a partir do momento em que acreditamos em nós mesmos. Gosto muito de desafios e são os desafios que a vida me oferece que fazem de mim um campeão. Atingir este nível aos 38 anos é 'dose'. Aconteceu porque gosto muito de trabalhar", refere Miguel Vieira.

Embaixador da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde 

Neste mês de setembro, Miguel Vieira tornou-se embaixador da supracitada sociedade. Quer influenciar positivamente as pessoas, dando o seu testemunho. Já o era habitual fazer, de resto, palestras em escolas, empresas e prisões: "A Dra. Cristina Vaz Almeida endereçou-me este desafio, de grande responsabilidade, de ser o primeiro embaixador desta mesma sociedade. Falar disto em Portugal é importante. A importância da saúde, que ouvimos muitas vezes só por ouvir, é pouco lida. Há muita ignorância do que nos acontece. Há pouca informação e conhecimento. Bastantes pessoas mais letradas falam sobre saúde na comunicação social. Há pessoas que ainda precisam de uma linguagem mais aberta, mais simples", na opinião do judoca.

E uma das vertentes da saúde que tem sido mais negligenciada na nossa sociedade, segundo Miguel Vieira, é a mental, já que muitas pessoas têm preconceito em ir ao psicólogo. "Conheço os dois mundos [dos visuais e invisuais]. Aceitar, não aceitar, não deixar-se cair na frustração... Eu passei momentos de frustração, tentei acabar com a minha própria vida, mas há sempre uma luz que me deu esperança e que me fez pensar que vale a pena viver como sou. O facto de cegar não quer dizer tudo ficou por aí." Tanto que Miguel Vieira sagrou-se campeão mundial, licenciou-se em Relacões Públicas e Comunicação Empresarial, trabalha na Santa Casa da Misericórdia e teve três filhos... tudo isso depois de ficar cego.

Leia Também: Pauleta e Diana Gomes adidos da Missão de Portugal aos Jogos Olímpicos

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