Beneficiários de RSI queixam-se da falta de oportunidades nos Açores
Os beneficiários do Rendimento Social de Inserção (RSI) nos Açores queixam-se da falta de oportunidades e das pessoas que "falam do que não sabem" quando se referem àquela prestação, que é um apoio "importante", mas insuficiente.
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Economia RSI
Num dos centros de convívio da Associação Novo Dia, em Ponta Delgada, um grupo de homens partilha as suas histórias de vida marcadas por um passado de exclusão social.
É o caso de Bruno Câmara, que chegou àquele centro há dois meses, por intermédio da clínica de toxicodependência: "agora estou a fazer tratamento, senão fosse essa casa a ajudar-me não sei como iria ser", diz à Lusa.
O homem de 49 anos recebe uma prestação de RSI de 183 euros, um valor "quem nem dá para alugar um quarto", nem mesmo se fosse "para dormir no chão".
O sotaque norte-americano no discurso ajuda a revelar o passado de Bruno, que esteve 18 anos nos Estados Unidos da América (EUA). Já voltou há 14 anos para São Miguel, uma ilha onde "não tem ninguém", porque a sua "única família", a irmã, está nos EUA.
"Eu cá não tenho ninguém. Se não fosse o rendimento, estava despachado [arruinado]. É pouco, mas é uma ajuda. Dá para pagar essa casa aqui e cresce algum dinheiro para ir comendo uma coisinha", explica.
Desde que regressou ao arquipélago, diz sentir "na pele" o "olhar maligno" das pessoas, que "gostam de falar mal" de alguém que teve um "azar" na vida.
"As pessoas são muito críticas e falam do que não sabem. Sinto que há muita critica sobre quem recebe o rendimento e sobre os deportados. A gente vai pedir trabalho e toda a gente diz que não tem. Se não há trabalho, para que é que as pessoas falam mal?", questiona.
Mais ao lado está José Carlos Medeiros, 47 anos, que reside no centro de acolhimento desde 2016. Foi ali que encontrou abrigo, depois de ter estado "várias vezes nas ruas". Tempos "muito difíceis", porque as "ruas não são sítio para se estar".
"Tive problemas familiares, depois entrei em depressão, vim pedir ajuda aqui ao Novo Dia e agora tenho ajuda do psicólogo. Vim para cá porque não tinha casa para morar, não tinha nada", recorda.
José Carlos, natural da Ribeira Grande, concelho no norte da ilha, recebe uma prestação mensal de RSI de 190 euros, um valor que "dá para muito pouco", porque os preços dos quartos estão "elevadíssimos" e os "produtos do supermercado estão cada vez mais caros".
"As pessoas não sabem o que é receber o rendimento mínimo. É preciso ter tudo contadinho e quando há um dinheirinho a mais, compra-se um cafezinho nessa máquina", diz, apontado para uma máquina de bebidas automática onde o café custa 40 cêntimos.
O RSI é uma "ajuda importante" para José Carlos que tentou por "várias vezes" arranjar um emprego, mas a falta de escolaridade ou da carta de condução continuam a ser os maiores obstáculos: "não é por falta de vontade".
"A gente vai ao centro de emprego e não tem estudos. Chega lá, dá o nome e vai para a escola. Foi assim que tirei o sexto ano. Depois vai para uma entrevista, mas não dão trabalho. O problema não é querer trabalhar, é não ter trabalho", afirma.
Diz, por isso, que lhe "custa" ouvir quem "fala sem saber" da vida dos beneficiários do RSI. Uma "pessoa parece perder todo o seu valor" só por "receber uma ajuda".
"As pessoas olham com desdém. As pessoas só falam porque não passam pelas situações. Quem não passa é que não dá valor. Ninguém pode falar de ninguém porque isso está cada vez pior. Se não fosse o rendimento como é que eu ia viver", pergunta.
Naquele centro, os utentes pagam 60 euros por mês e têm direito a um quarto, refeições e "roupa lavada", explica José Carlos.
É um dos centros da Associação Novo Dia, uma Instituição Particular de Solidariedade Social fundada em 2002 e que atualmente tem 42 funcionários para prestar apoio a cerca de 150 pessoas em situação de exclusão social.
Paulo Fontes, técnico da Associação e membro da equipa fundadora, diz não conseguir identificar um "perfil" do beneficiário do RSI nos Açores, mas refere que uma "grande parte das pessoas" que recebe o rendimento tem "trabalhos precários".
No caso dos Açores, que em maio de 2021 registava 14.412 beneficiários individuais e 5.048 famílias a receber a prestação, o RSI "está muito associado à pobreza", uma vez que o arquipélago continua a ser a região do país com a mais elevada taxa de risco de pobreza (31,8% quando a média nacional é de 17,2%).
"Temos falhado, na minha opinião, no essencial. Para quebrar ciclos de pobreza tem de se apostar na educação. O elevador social é a formação. É uma educação igualitária. É os filhos estudarem mais do que os pais, conseguirem melhor emprego do que os pais", defende Paulo Fontes.
O também sociólogo e professor na Universidade dos Açores considera o RSI o "patamar mínimo de dignidade", que "permite dar algum equilíbrio" a vidas e a contextos "normalmente muito complexos".
"Para nós que acolhemos pessoas sem-abrigo e que depois tentamos devolvê-las à comunidade, o RSI é muito importante, porque algumas não conseguem ter emprego. O RSI permite ajudar na renda ou apagar a alimentação, mas não dá para tudo", explica.
Por isso, Paulo Fontes afirma que, 25 anos após a implementação do RSI, "já é tempo de se dar um passo maior", defendendo a criação de um rendimento básico incondicional.
"É mais cómodo para quem não percebe o assunto ou não se quer pôr no lugar do outro dizer que são pessoas que não querem fazer nada, que estão à sombra do RSI, quando não é isso, claramente não é isso", acrescenta.
É nos Açores que o valor médio mensal pago aos beneficiários do RSI é mais baixo: em maio de 2021 o valor foi de 85,89 euros. É a única região do país onde a prestação mensal está abaixo dos 100 euros, de acordo com dados disponíveis no 'site' da Segurança Social.
Apesar do número de beneficiários do RSI, criado faz a 01 de julho 25 anos, ter aumentado em Portugal de 2019 para 2020, os Açores foram uma das três regiões (juntamente com o Porto e Aveiro) onde o número de pessoas que recebem o apoio diminuiu em 2020.
De 2019 para 2020, o arquipélago açoriano registou uma queda de 793 beneficiários da prestação ainda vulgarmente conhecida como rendimento mínimo (em 2019 era 15.386 e em 2020 eram 14.593).
João Silva, natural de Ponta Delgada, foi umas das pessoas que passou a receber o RSI nos últimos cinco meses, ele "que nunca pensou estar numa situação destas", provocada pelo encerramento da loja onde trabalhava devido à crise da pandemia da covid-19.
"De um momento para o outro vi-me sem nada e com filhos para sustentar. Não havia emprego, nem para acartar pedra. Não foi nada fácil, o rendimento mínimo é que me ajudou apesar de nem chegar aos 100 euros", assume.
O homem de 44 anos, que recebe uma prestação de 96 euros, acredita que o "pior já passou", porque com a retoma do turismo, começou a fazer "uns biscates" num espaço de restauração.
"Agora apareceu-me essa oportunidade e estou a ganhar uns trocos. Vai ser um balão de oxigénio e depois do Verão há de se ver", afirma, concluindo com uma expressão que espelha a imprevisibilidade dos tempos que correm: "isso da maneira que está não vale a pena fazer planos para longo prazo, é ir vivendo da maneira que se pode".
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