Poiares Maduro preocupado com "processos editoriais do jornalismo"
O professor e antigo ministro Miguel Poiares Maduro manifesta, em entrevista à Lusa, "preocupação" com a "contaminação dos processos editoriais do jornalismo" pela lógica das redes sociais e volta a defender uma alteração do modelo de propriedade da Lusa.
© Global Imagens
Economia Jornalismo
Miguel Poiares Maduro, que é diretor da Global Law School, Universidade Católica Portuguesa, e professor da Cátedra Vieira de Almeida, vai marcar presença na 31.º edição do Congresso da APDC, no painel de debate sobre democracia na era digital.
O espaço público, refere o académico, que é o "coração do ecossistema da democracia, tradicionalmente é editado pelos jornalistas, com base em critérios editoriais que determinam qual é a informação prioritária que nós vemos", quais são os diferentes pontos de vista.
Mas "o que está a acontecer é essa substituição do espaço público tradicional editado pelo jornalismo pelo espaço público das redes sociais editado por algoritmos", o que, por um lado, "coloca em causa a sustentabilidade do jornalismo tradicional e esse é um grande desafio", pois "aumenta os problemas que já existiam nessa matéria, com todos os desafios que a perda de sustentabilidade económica e financeira do jornalismo traz para a própria qualidade e independência do jornalismo", acrescenta.
O segundo aspeto "é o risco a que nós estamos a assistir, é a contaminação dos processos editorais do jornalismo pela lógica editorial das redes sociais", alerta, em se dá o mesmo peso ao que não tem (por exemplo um debate sobre o Holocausto entre um historiador especialista neste tema e um negacionista do Holocausto).
"E quando tudo tem a mesma autoridade, nada tem autoridade", critica, referindo que isso "é a eliminação do critério editorial".
O antigo ministro que teve a tutela dos media recorda uma entrevista recente na rede 4 em Itália ao ministro da diplomacia russa, Lavrov, em que este não foi confrontado com questões difíceis, nem com informações falsas.
"O que nós estamos a ver é um media aceitar fazer o papel de uma rede social, que é deixar de fazer o seu papel de intermediação e de edição. Os media e o jornalismo têm valor porque nos ajudam, a nós, cidadãos, a identificar a credibilidade que tem uma posição versus outra", argumenta o professor, salientando que "no jornalismo não se dá o mesmo peso a todas as instituições".
Aliás, "o pluralismo não é dar a todas as vozes e opiniões que existem sobre o mesmo tema o mesmo peso, não, é saber atribuir a vozes credíveis que têm autoridade para falar sobre certos temas", insiste Miguel Poiares Maduro.
Mas "quando os media começam a reproduzir a lógica das redes sociais que não têm essa avaliação, qualquer posição parece ter o mesmo valor" e, com isso, "estamos a perder o papel do jornalismo", enfatizou.
"Aquilo que estamos a assistir muitas vezes, e no próprio debate sobre aquilo que os jornais e as televisões, por exemplo, devem reproduzir quanto ao que se passa na guerra da Ucrânia, é a perda dos critérios editoriais do jornalismo, é a substituição da edição, que é um papel fundamental do jornalismo -- que é ajudar-nos a distinguir aquilo que é verdade (...) -- por qualquer posição sobre este tema", prossegue.
Para Miguel Poiares Maduro, tal "não deve ser assim" porque isso é substituir os critérios editorais dos media pelos processos editoriais dos algoritmos das redes sociais.
"E nós estamos em parte, neste debate, a assistir a isso e eu vejo isso com alguma preocupação", sublinha.
O professor considera que deveria acontecer "exatamente o contrário", defendendo que é preciso trabalhar no "sentido de promover" a existência de algoritmos nas redes sociais, na área da informação, que sejam editados pelos media.
As redes sociais "deviam ser forçadas "a abrir os seus algoritmos para permitir concorrência entre diferentes algoritmos", permitindo que os seus utilizadores possam escolher um algoritmo para o seu 'feed' de informação.
Questionado sobre o papel dos media públicos no mundo cada vez mais digital, Miguel Poiares Maduro afirma: "Resistir a essa mudança dos critérios editoriais clássicos do jornalismo pelos processos editoriais próprios das redes sociais".
Os media públicos devem "tentar contribuir para que os processos editoriais de jornalismo -- já estavam em crise em muitos aspetos, pela própria dificuldade da sustentabilidade financeira, pela própria mudança do ritmo da informação --" e "reforçar e enfatizar ainda mais a importância da edição dos processos editoriais e da qualidade dos critérios editoriais no jornalismo", defende.
Além disso, "tentar contribuir para que isso se transfira cada vez mais também para as redes sociais e não o contrário", insiste o professor.
Poiares Maduro admite que há "problemas no modelo de sustentabilidade financeira dos media, em geral", quer privados, quer públicos.
No entanto, "o primeiro ponto muito importante que temos de ter em conta é que esse problema de sustentabilidade não resulta de uma perda de relevância das notícias e do consumo das notícias", isto é, "enquanto objeto de negócio potencialmente gerador de recursos financeiros e receitas, as notícias têm hoje mais interesse do que antes", sublinha.
As pessoas "consomem mais notícias do que consumiam no passado", um "paradoxo", mas "trata-se, sobretudo, de readequar os modelos de negócio", considera.
"E isso exige alterações importantes e que não são fáceis no setor privado, mas também exige no setor público", afirma.
No caso português, do ponto de vista da Lusa, Miguel Poiares Maduro volta a defender "uma alteração do modelo de propriedade" da agência de notícias, onde o Estado tem a maioria do capital.
"Acho que o modelo ideal, já disse isso, [mas] nunca tive tempo de o implementar, era um modelo quase uma espécie de fundação, que era propriedade de todos os órgãos de comunicação social", salienta.
Ou seja, todos os media teriam propriedade da Lusa e o Estado asseguraria a essa fundação, sem ter papel na gestão, "um financiamento regular".
No caso da RTP, "o modelo já está mais próximo" desse género, com o Conselho Geral Independente (CGI), órgão de supervisão da administração da empresa criado no tempo em que Miguel Poiares Maduro era ministro da tutela.
"A questão depois é o montante que o Estado devia financiar", mas "eu acho que quanto mais independentes e mais autónomos forem, quer a Lusa quer a RTP, mais fácil é de justificar perante os cidadãos o financiamento", afirma, reconhecendo, contudo, que "não é fácil".
A edição deste ano do congresso da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC), que dura dois dias, arranca no dia 11 de maio e será em formato híbrido.
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