"Tentei ser uma menina bem comportada, mas não era para mim"

'Quando eu era pequenina', o mais recente livro de Luísa Castel-Branco, foi o mote para uma conversa sobre as memórias da infância infeliz de uma mulher com coração à prova de bala.

Notícia

© Mário Santos / Contraponto Editores

Rita Alves Correia
04/12/2020 09:20 ‧ 04/12/2020 por Rita Alves Correia

Fama

Luísa Castel-Branco

Muitos admiram-na, outros vergam-se perante a sua personalidade 'sem filtros', mas poucos "lhe conhecem a história". Até agora. Luísa Castel-Branco acaba de lançar 'Quando eu era pequenina', um livro de memórias que relata as histórias mais marcantes dos primeiros anos de vida.

Nascida em 1954 e natural de Alfragide, Amadora, escreve este volume para deixar aos netos o testemunho de uma 'sobrevivente' e para avivar a memória dos leitores de que Portugal mudou, felizmente, para muito melhor.

Este é o primeiro livro de uma triologia que relata os pensamentos e emoções da sua vida privada. Quando foi desafiada a escrevê-lo, aceitou de imediato?

Não sabia para o que ia. A ideia seduziu-me porque seria escrever sobre as fases da vida das pessoas, em abstrato, mas depois o editor começou a dizer que seria melhor se fossem histórias minhas. Comecei a escrever sobre mim e fui ‘apanhada na rede’. Uma vez começando, percebi que fazia muito mais sentido, embora tenha sido um processo bastante doloroso.

Depois desse processo “doloroso”, como se sente agora que as suas histórias mais íntimas já estão a chegar aos portugueses?

Primeiro que tudo, em relação a mim mesma, sinto que fiz uma catarse e que foi muito bom. Cheguei ao fim e encontrei uma paz de alma que me fazia falta. Isto prende-se muito com a circunstância do confinamento - quando escrevi o livro -, com a morte da minha mãe… Tudo junto.  Em relação às pessoas, as reações que tenho tido de pessoas da minha geração ou anterior é que se revêem muito, as pessoas mais novas surpreendem-se e o mais interessante é que muita gente que vive fora de Lisboa e das cidades diz que a vida continua muito semelhante ao Portugal daquela altura.

Não guarda as melhores memórias da infância. O que é que a Luísa de hoje ainda tem dessa menina?

A rebeldia, o instinto de sobrevivência e esta necessidade do mundo da magia - seja através da escrita, seja na relação com os meus netos.

Em que é que se espelhava a sua rebeldia?

Tinha muitas limitações, obviamente, e naquele tempo as relações com os pais eram muito mais frias, não era suposto haver manifestações de carinho. No meu caso ainda mais porque os meus pais separaram-se. Sempre fui uma criança e uma pré-adolescente que não me calava, não aceitava o ‘porque sim’. Lidava pessimamente com injustiças e era pessoa de refilar e nunca chorar. 

Diz que cresceu assente nos ideais de Deus, Pátria e Família. O conceito de família ainda é o mesmo para si?

Não, deixou de ser o mesmo quando me casei e o casamento terminou. Se há coisa que qualquer filho de pais separados não quer é que isso aconteça. Se alguma coisa foi profundamente diferente, foi a minha relação com os meus filhos. Sabia que não queria fazer-lhes o que me fizeram a mim. Por outro lado, foi complicado porque a minha forma de educar não foi aceite por ninguém (família e conhecidos). Mas isso fez de mim quem eu era e quem eu sou. 

Que mãe se tornou depois de ter crescido numa infância infeliz?

A infância marcou-me em tudo e fez-me valorizar tudo aquilo que não era aceitável. Fez-me ter uma relação com os meus filhos em que nunca houve violência, houve sempre o fomentar daquilo que eles tinham de melhor e [de lhes transmitir] que eles podiam ser quem quisessem ser, era uma questão de descobrirem o que é que gostavam e de lutarem por isso.  Entrando no segundo livro, todos nós fazemos asneiras, os filhos e os maridos não vêm com livros de instruções, mas se há coisa que posso chegar a esta altura e dizer é que tenho a sorte de ter três filhos que reconhecem tudo o que eu fiz. Há muita gente que se vira ao contrário pelos filhos e eles não reconhecem nada. Os meus filhos não só reconhecem como têm gratidão e cuidam de mim. Querem hoje em dia dar-me o retorno do que lhes dei e isso é o que enche a alma de uma mãe.

"Sentia que estava a pagar um preço muito alto e depois fiquei sozinha com três filhos e cheguei a acumular quatro trabalhos ao mesmo tempo porque precisava de ganhar dinheiro"Seguiu o caminho que os seus pais quiseram?

Não, de forma nenhuma. Eu tentei. Tentei ser uma menina e uma adolescente bem comportada, mas não era para mim, definitivamente. Eles idealizavam que eu casasse e eu casei-me com 22, mas na minha geração era normal. Mas idealizavam que tivesse uma profissão aceitável socialmente, que eu encarnasse o papel que as raparigas e mulheres encarnavam naquele tempo. Não fiz absolutamente nada disso. Fiz o caminho todo ao contrário. 

Isso trouxe-lhe liberdade ou sentimento de culpa?

Sentia que estava a pagar um preço muito alto e depois fiquei sozinha com três filhos e cheguei a acumular quatro trabalhos ao mesmo tempo porque precisava de ganhar dinheiro. Não era uma questão de me sentir realizada com o que fazia - embora em todas as áreas em que trabalhei não era suposto uma mulher trabalhar -, mas era sempre uma corrida. Mas tudo o que fazia, queria fazer bem. Nunca competi com ninguém, competia comigo mesma.

Lidou bem com o facto de a sua filha Inês querer seguir a carreira artística?

Fui a única pessoa que lidou bem. A primeira vez que vi essa opção foi quando a Inês andava no antigo 5.º ano e fez testes que eram obrigatórios no Liceu Rainha D. Amélia e a primeira opção era Teatro. E pensei: ‘Aqui está, é por isso que ela é tão silenciosa’. Mais tarde acabou por descobrir o Teatro e muitos familiares não gostaram, mas eu achei, mais uma vez, que o importante é seguir o sonho. A maior parte das pessoas anda uma vida inteira a trabalhar em coisas que não gostam, é terrível.

Como conheceu o Francisco? 

Conheci-o quando tinha 18 anos porque a minha amiga Margarida, que aparece no livro, era amiga dele. E ele era um idiota. Ele foi à vida dele e eu fui à minha, e voltámos a encontrar-nos quando já estávamos separados e com filhos. Encontrámo-nos num aniversário dessa amiga. 

Hoje em dia, como vive o amor? 

O amor transforma-se e as relações são muito difíceis de manter porque precisam de investimento 24 horas por 24 horas. Viver a dois é complicado e muitas vezes o amor não chega. Muitas vezes acabas uma relação amando porque não consegues viver com a pessoa. Portanto, sim, as relações mudam com a idade, com os problemas, com a rotina, e depois, das duas uma: ou dão um ao outro o que precisam ou não.

Ele é a sua calma?

É, mas vamos ser verdadeiros, tudo tem um preço. Não há santos nem santas. Encontro no Francisco tudo o que eu não sou porque o facto de ele ser tão diferente de mim é uma mais-valia. Ele é capaz de ver sempre o copo meio cheio e o meu copo já nem está vazio, está partido. Ele consegue sempre elevar-me. Mas acima de tudo há uma coisa que me fez apaixonar-me pelo Francisco e amá-lo estes anos todos: ele sempre aceitou que os meus filhos estavam antes dele. São 26 anos de relação e os meus filhos adoram-no. Eles acham que o tio é um santo por me aturar. Não haveria homem nenhum que estivesse ao mau lado e que tivesse uma má relação com os meus filhos, acabava no mesmo dia. Quando o Francisco veio viver comigo eu disse aos meus filhos: ‘Se houver algum problema, ele sai, tenha razão ou não’. 

Outra coisa, é que depois de estar com o Francisco, comecei a fazer televisão e ele passou a ser o ‘senhor de’ e isso nunca o incomodou, pelo contrário. Sempre foi a pessoa que me disse que eu era capaz e que estava ótima. E depois com a minha filha a mesma coisa. Era o marido da Luísa Castel-Branco e o padrasto da Inês e isso sempre lhe pôs um sorriso na cara. 

Este ano tomou a decisão de abandonar o ‘Passadeira Vermelha’. Tenciona manter-se afastada da televisão?

Não sei. Enquanto for perigoso para mim, sim. Sou doente de risco e tenho de ter cuidado. 

O mundo como o conhecíamos deixou de existir. A Covid-19 transporta-nos para um pesadelo que só nos permite viver o dia a dia"Mas tem saudades?

Tenho saudades do início do ‘Passadeira’ e da relação que tínhamos. Eu, a Ana Marques, o Cláudio Ramos e a Liliana Campos tínhamos uma relação muito gira. Confesso que não é a área em que mais gosto de trabalhar - gosto mais de fazer entrevistas -, mas aqueles primeiros anos correram muito bem e acabaram por ser um auxílio enorme. Muitas vezes estava doente e eles puxavam-me para cima. Se voltarei ou não a fazer, neste momento o que podemos fazer é pensar no dia a dia. O mundo como o conhecíamos deixou de existir. A Covid-19 transporta-nos para um pesadelo que só nos permite viver o dia a dia. É muito difícil fazer projeções.

O que é que um projeto tem de ter para a ‘agarrar’?

Tem de me apaixonar. É como a escrita, ainda que doa e custe como este livre, é uma paixão. 

Futuramente vai estar dedicada à escrita dos dois volumes. Prevê que o próximo livro seja igualmente intenso?

A minha vida dava um filme. 

Mas este terá sido o que abriu a ‘gaveta’ mais sensível.

Foi. A minha mãe morreu enquanto eu estava a escrever este livro. Ela estava com demência e Alzheimer e eu apercebi-me que estava a escrever porque gostava que os meus netos soubessem como é que era a vida quando eu era nova. Percebi que me podia acontecer a mim [o que aconteceu à mãe] e isso bateu-me forte. Posso dizer que, os meus filhos não sabiam de nada do que consta neste livro.

Como foram as reações da família?

A reação mais fantástica que tive e que fez com que este livro valesse 200% a pena foi a da minha filha, o post que ela fez. Ela falou comigo primeiro, mas não me tinha dito nada daquilo. Disse que tinha rido e chorado comigo, que estava bem escrito e deu-me os parabéns. Mas depois fez um post que era o que eu mais queria que acontecesse, validou este projeto

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Também o Cláudio Ramos se mostrou muito comovido...

Conhecemo-nos há 18 ou 19 anos. É engraçado ele dizer que pensamos que conhecemos as pessoas e não lhes sabemos as histórias. Isso aplica-se a mim e a qualquer outra pessoa. O Cláudio é um amigo.

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Uma publicação partilhada por Claudio Ramos (@claudio_ramos)

Este ano atípico trouxe-lhe (ou levou-lhe) o quê?

Levou-me a minha mãe, uma prima minha que em três meses morreu com cancro nos ossos. Deu-me horas e horas com os meus netos, o carinho das pessoas e dos espectadores, e uma confirmação de que os meus filhos se preocupam comigo acima de tudo. Trouxe-me também este livro. Quando acabei de escrever pensei: ganhei uma paz interior enorme. 

Notícias ao MinutoCapa do livro 'Quando eu era pequenina'© Contraponto Editores

 

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