"Escrevo fechada em casa há 20 anos. Conheço formas de enganar a solidão"
'A Certeza do Acaso' é a mais recente obra de Margarida Rebelo Pinto, lançada no final de 2020. Um livro que foi o grande destaque da conversa da autora com o Fama ao Minuto.
© Global Imagens
A partida do pai, no ano passado, o sentimento do 'ninho vazio' e o envelhecimento foram alguns dos temas abordados por Margarida Rebelo Pinto em entrevista ao Fama ao Minuto.
Conversa que chega depois de a escritora ter lançado no final de 2020 uma nova obra, 'A Certeza do Acaso'.
Este momento particularmente difícil que Portugal - e o mundo - vive com a pandemia da Covid-19 não ficou esquecido, com Margarida Rebelo Pinto a destacar que viver 'confinada' é já a sua realidade há muitos anos, depois de ter escolhido seguir caminho na escrita. "Escrevo fechada em casa há 20 anos, trato o silêncio por tu e conheço mil formas de enganar a solidão", diz.
‘A Certeza do Acaso’ - “É mais fácil cruzar o mundo do que esquecer um grande amor”. Qual o grande amor que nunca esqueceu e qual o maior amor que fica connosco mesmo quando morremos?
Para mim, o maior amor do mundo é o amor materno. Quando o meu filho Lourenço nasceu há 25 anos, lembro-me de sentir que quando ele estava a beber o meu leite estava a alimentar a minha vida. Para mim, ser mãe continua a ser a minha maior e mais extraordinária aventura. Só tenho pena de não ter tido mais filhos, porque sempre sonhei com uma casa cheia. O grande amor que nunca vou esquecer é o meu pai.
O luto nunca é igual: há dias em que nos esmaga e outros em que as memórias são tão boas que nos fazem companhia
“O luto muda de cor todos os dias”. Quais foram as cores do luto pelo seu pai e em que fase está, neste momento, o luto?
O meu pai estava doente há muito tempo, a sua partida não me apanhou de surpresa. Escrevi essa frase numa mensagem privada, acerca do luto mudar de cor, e depois decidi incluí-la no livro, porque o luto nunca é igual: há dias em que nos esmaga e outros em que as memórias são tão boas que nos fazem companhia. Penso que o mais importante é aceitar que ninguém é eterno, que todos estamos cá de passagem.
Qual o legado deixado pelo seu pai?
Um grande sentido de independência e de liberdade. Praticar a integridade e estar sempre do lado da verdade, custe o que custar. E um amor e uma dedicação incondicionais à família.
Quando entrámos no primeiro confinamento eu dizia às pessoas, vês, agora já sabes o que é a vida de um escritorComo foi o seu primeiro confinamento? Quais os sentimentos que viveu nesse período? E como está a ser este segundo confinamento?
Quando entrámos no primeiro confinamento eu dizia às pessoas, vês, agora já sabes o que é a vida de um escritor. Escrevo fechada em casa há 20 anos, trato o silêncio por tu e conheço mil formas de enganar a solidão. Este está a ser mais difícil, pelo cansaço inevitável que todo este caos nos trouxe ao dia a dia. As pessoas estão exaustas, toda esta solidão forçada está a provocar tragédias privadas e vai deixar sequelas em todos.
Na distância, o que mais custa? O medo da perda ou os momentos que ficam por viver?
Não tenho medo nenhum de perder aqueles que amo porque, pelo menos até agora, ninguém próximo está infetado com gravidade. Distância não é ausência. O que me faz mais falta são os abraços da minha mãe, do meu filho, do meu irmão, das minhas sobrinhas e de alguns amigos que são como família.
Nada substitui o calor de um abraço. Nada. Mas é bom lembrar que antes da pandemia as pessoas já andavam um bocado perdidas e desperdiçaram muito afeto, o livro também é sobre essa gestão pouco responsável dos afetos antes e durante a pandemia.
O que estamos a viver é uma guerra, só que em vez de caírem bombas, temos um vírus que tanto é assintomático como mata. O mundo está em modo roleta-russa
Esta fase foi uma boa altura para parar e pensar quem é realmente importante na nossa vida?
Já o foi no ano passado. Agora as pessoas estão tão preocupadas com as questões práticas do dia a dia que não têm tempo nem disponibilidade para grandes reflexões sobre a condição humana. O que estamos a viver é uma guerra, só que em vez de caírem bombas, temos um vírus que tanto é assintomático como mata. O mundo está em modo roleta-russa.
Aos 55 anos, quais as principais inseguranças que tenta combater?
Tenho medo de um dia perder a mobilidade. É um medo estúpido e infundado porque faço desporto quase todos os dias e vivo numa casa com escadas que passo o dia a subir e a descer. Não sinto insegurança em relação a mim, mas em relação ao mundo no qual o meu filho vai viver, e se ele tiver filhos, no estado em que vai estar o mundo se tiver netos.
A minha mãe tem o dentro dela o elixir da juventude e eu acredito que herdei isso
O que mais lhe custa com o envelhecimento?
Não me sinto a envelhecer, mas acho que o que mais se perde com a idade é a paciência. A partir dos 40 todas as decisões importantes que tomamos são pelo nosso conforto, a partir dos 50 são pela nossa paz e o nosso sossego. A minha mãe tem o dentro dela o elixir da juventude e eu acredito que herdei isso. É apenas uma crença, mas o meu corpo, o meu peso, o meu estilo de vida e as minhas paixões não mudaram nos últimos 10 anos. Sinto-me como se tivesse 45.
Com o envelhecimento vem também a perda de pessoas muito importantes na nossa vida… Onde se vai buscar forças nessas fases?
Às que cá ficam, porque são essas que precisam de nós. E ao legado que deixam aqueles que já partiram.
O apego é o preço do afeto e nunca estamos preparados para o ninho vazio
Um momento que muitas vezes coincide também com o facto de o nosso ‘ninho’ começar a ficar mais vazio com a saída dos filhos de casa... É como se recuássemos no tempo e tivéssemos de reaprender a viver de novo ‘sozinhos’?
É como aprender a andar outra vez de bicicleta sem rodinhas. É estranho chegar a casa e não ter de fazer o jantar para os miúdos. Ou acordar em silêncio. A maior parte dos pais demora décadas ou nunca chega a desmanchar os quartos dos filhos, é normal. O apego é o preço do afeto e nunca estamos preparados para o ninho vazio. Pensamos que sim, mas na verdade não estamos. Vou a fundo nesse tema no romance, porque não é fácil. Na verdade, gosto de escrever sobre questões difíceis, é o que me estimula.
Mesmo que não veja ninguém, converso com o meu trabalho. O meu trabalho é hoje em dia a minha grande companhia
Mas nesta fase temos ferramentas que ganhámos com a vida e que não tínhamos quando, por exemplo, começámos a viver pela primeira vez a fase da independência. Quais são as suas ferramentas para enfrentar o sentimento do ‘ninho vazio’?
A minha casa é ponto de encontro de amigos, sobretudo de amigas. Falo com o meu filho todos os dias e quase sempre no FaceTime para ser uma comunicação mais próxima. Antes dos confinamentos e entre o primeiro e o segundo, via-o pelo menos uma vez por semana. Viajava sempre que podia. Retomei o ballet e interessei-me por novos hobbies. E claro que a escrita é uma grande companhia. Se estiver a escrever nunca me sinto só. Um dia bom é um dia em que consigo escrever. Mesmo que não veja ninguém, converso com o meu trabalho. O meu trabalho é hoje em dia a minha grande companhia.
“Todos precisamos de sonhar para viver, mas às vezes é preciso mudar de sonhos”. Quais são os seus sonhos?
Ter saúde até o dia em que morrer. Ver o meu filho a realizar os seus sonhos. Poder estar com aqueles que amo. Poder dar mergulhos no mar durante os próximos 30 anos. E tenho um sonho que talvez seja impossível, que depois desta pandemia não surjam outras.
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