Virginia López nasceu em Espanha mas o Programa Erasmus trouxe-a para Portugal, de onde não mais saiu. Vive em Lisboa, com o marido, Vasco Simões, e os filhos, Dinis e Santiago. É jornalista, escritora, palestrante e formadora mas, neste que é o seu décimo livro publicado, transporta-nos para uma viagem de dor, renascimento e superação.
É que, numa manhã como tantas outras, Virginia descobriu um caroço na mama esquerda que lhe mudou a vida para sempre. Aos 43 anos, o diagnóstico do cancro da mama levou-a a lugares que não conhecia, a dores físicas e emocionais que a transformaram na mulher que é hoje.
Virginia é hoje, uma mulher de peito aberto à vida, ao amor, à felicidade e à simplicidade do mais comum dos dias. O seu livro é uma 'Ode à esperança e à vida' e, mesmo que possa emocionar, Virginia ensina a secar as lágrimas e a tocar o coração dos leitores.
O seu objetivo é claro. Não quer deixar nenhuma mulher de fora.
Na noite em que o meu marido me rapou o cabelo eu fiz uma fotografia para enviar aos meus familiares, às minhas amigas. No momento em que olhei para a fotografia pensei que também a podia partilhar para informar as pessoas todas pelo que eu estava a passar, mas com uma nota positivaHoje [5 de novembro] é o dia em que vai para as bancas o seu livro, 'De Peito Aberto à Vida', deve ser um dia muito emocionante para si?
É, é sim. O nascimento de um livro é sempre emocionante. Este é especial, é o meu décimo livro mas é um livro como se fosse o primeiro, por tudo o que ele representa.
© Virginia Lopez
Como surgiu a ideia de escrever este livro, qual é que foi o seu ponto de partida?
Na verdade ele foi-se escrevendo, por assim dizer. Não pensei logo quando soube que tinha cancro e que ia ter que passar por todo este processo, não pensei: 'Olha que bem, vou escrever um livro sobre isto', pelo contrário. Quando se confirmou o diagnóstico ainda não tínhamos contado aos meus filhos, aos familiares, depois foi um processo mais pessoal, mais familiar. Só que quando tive que rapar o cabelo, aí a doença torna-se visível, é inevitável as pessoas saberem. Na noite em que o meu marido me rapou o cabelo eu fiz uma fotografia para enviar aos meus familiares, às minhas amigas. No momento em que olhei para a fotografia pensei que também a podia partilhar para informar as pessoas todas pelo que eu estava a passar, mas com uma nota positiva. A fotografia ficou viral, as pessoas começaram a comentar, comecei a receber chamadas da televisão, então nesse momento percebi que a dimensão era muito grande mas que não era uma história só minha, era uma história de muitas mulheres.
A partir daí comecei a perceber que, mesmo que fosse uma história contada na primeira pessoa, a jornalista que ainda está dentro de mim também tinha um tema muito atual para relatar, porque há cada vez mais mulheres com cancro da mama. A jornalista e a escritora uniram-se e, a partir daí, pensei que poderia escrever sobre isso. Durante os tratamentos ia escrevendo de vez em quando, mais em modo diário, mas só este ano, já com a cabeça mais assente, é que comecei a estruturar melhor as ideias, fui procurar rascunhos que tinha escrito, não é uma ideia de repente. Disse ao meu marido: "Olha tinha ficado sem ideias para o novo livro, parece que a vida me deu esta nova aventura".
Há um capítulo que chamo 'Um dia de m****' e é tão, tão verdadeiro e íntimo que poderia ter guardado só para mim, mas não podemos suavizar as coisas, quis ser muito verdadeira porque, se há uma mulher que está à beira do delírio como estive nessa noite e consegue ler e lhe serve de algum consolo, então o meu trabalho como escritora terá valido a pena
A Virgínia quando escreve este livro é para si e também para as outras mulheres, para que não se sintam sozinhas e encontrem conforto nas suas palavras?
Sim, a história está contada na primeira pessoa por isso é um relato muito íntimo, está contado no presente, os processos que mais me marcaram, o relato da minha história, do que passei, do que aprendi, a jornalista também precisava de ir à procura de mais informação. Sobretudo foi expor as minhas emoções de forma muito honesta, muito sincera, sem vergonha. Há um capítulo que chamo 'Um dia de m****' e é tão, tão verdadeiro e íntimo que poderia ter guardado só para mim, mas não podemos suavizar as coisas, quis ser muito verdadeira porque, se há uma mulher que está à beira do delírio como estive nessa noite e consegue ler e lhe serve de algum consolo, então o meu trabalho como escritora terá valido a pena.
Cada história é uma história mas há emoções que todas partilhamos e às vezes quando as expressamos as coisas tornam-se um pouquinho mais leves. É esse o objetivo do livro. Os homens também passam por isto, o meu marido, por exemplo, passou por tudo ao meu lado. Este cancro não foi meu, foi nosso, foi da família.
O meu marido tanto me queria apoiar que, quando saímos da consulta onde o médico nos disse que ia ter que fazer uma mastectomia, e eu ainda estava a tentar gerir todas as emoções que estava a sentir porque ia perder um peito, ia para a praia nos meses a seguir, como é que eu ia olhar para o espelho e gostar de mim? Ele, com toda a sua boa intenção, disse que ia gostar de mim de qualquer maneira e, naquele momento, acabei por gritar com ele: "Quero lá saber se tu gostas ou não gostas, primeiro tenho que gostar eu. "Primeiro tinha que encontrar esse amor próprio e depois conseguir receber o amor das pessoas à volta, é importante esse momento em que teve essa aprendizagem, o cancro estava no meu corpo mas não era só meu, era nosso e também dos meus filhos. Eles tiveram que me desculpar em muitos momentos em que não fui a minha melhor versão, tive longe de ser. Aprendemos todos juntos, foi um processo de amor, o amor prevalece sempre, recebi tanto amor que não tinha como não estar feliz. É super importante procurarmos o sítio certo que nos faça sentir amadas.
Virginia com o marido © Virginia Lopez
Ao escrever este livro reviveu memórias muito duras, como é que foi esse processo?
Mais do que o escrever, é o passar pelo processo, a escrita depois é um pouco o colocar no papel todas as emoções que me tinham estado a acompanhar no processo. A minha mãe viveu 8 anos com cancro e acompanhei à distância, e vi o processo dela. Claro que não é a mesma coisa vivê-lo de perto e vivê-lo na própria pele. Eu fiquei a admirar ainda mais a minha mãe e, quando digo a minha mãe, digo todas as pessoas outras pessoas que estão a passar pelo mesmo processo. Escrever, para mim, é mais uma catarse, é conseguir pôr cá para fora todas essas emoções, para mim é uma terapia, é expressar o que eu sinto ao mesmo tempo com aquele objetivo de poder servir para alguém que esteja a passar pelo mesmo, poder servir para aliviar e para ninguém se sentir sozinho. Há muitos momentos em que nos sentimos mais sozinhas, estamos no nosso casulo, é normal. Saber que não se está sozinha, que outras pessoas já passaram pelo mesmo, serve de um certo consolo. Quando reli o livro, de outra perspectiva e com distanciamento, aí sim, emocionei-me muito porque no momento estava a expressar, a canalizar tudo isso através da escrita, ao reler houve muita emoção e chorei enquanto voltei a reviver os episódios mais duros.
Virginia com a mãe © Virginia Lopez
Ficam as cicatrizes emocionais e essas não somos tão conscientes no momento. Quando passa o tempo é que temos noção de que nada mais vai ser igual, de que poderíamos estar mais perto da morte e que existe a incerteza que é viver com esta dúvida o resto da vidaA Virginia chorou porque já não se lembrava de todos os detalhes ou é impossível esquecer alguma coisa?
Quando estás no processo da quimioterapia e radioterapia os efeitos secundários foram duros. Um dos efeitos secundários é o nevoeiro mental, sentia que ativava o 'modo sobrevivência' e quando o processo acaba e a pessoa começa a recuperar o seu ser, começa a ver as fotografias daquela altura... Através da escrita voltei a esses episódios e pensava mesmo que estava só em 'modo sobrevivente' e não tinha consciência do quão duro foi, mas sou muito positiva. Parece que me passou um camião por cima, por isso, e só depois do camião me sair de cima, é que comecei a perceber como ficou o corpo, a nível físico e psicológico. Ficam as cicatrizes emocionais e essas não somos tão conscientes no momento. Quando passa o tempo é que temos noção de que nada mais vai ser igual, de que poderíamos estar mais perto da morte e que existe a incerteza que é viver com esta dúvida o resto da vida. Podemos sentir-nos um bocado perdidas, até que eu disse: "Bom, o que é que eu faço à minha vida?" Agarrei-me ao que mais gosto de fazer que é escrever.
© Virginia Lopez
Cuida do teu corpo, da tua mente, das tuas emoções, é isso que nos faz adoecerA Virginia fala muito da cura, que está relacionada com a nossa capacidade de acreditar, de confiar na vida. Sente que o seu positivismo foi crucial na sua cura?
Para mim é uma das minhas armas. O humor e o positivismo, e ver o copo a transbordar, sempre. Às vezes não há espaço para eles, mas assim que recupero a capacidade, volto a ser positiva, é uma vontade de sobrevivência que é superior a nós próprias. A minha mãe era assim, tenho um grande exemplo nela, queria viver sempre, não viveu nem de longe todos os anos que gostaria de ver vivido, não baixou os braços. Não gosto nada de expressões como "perdeu a batalha". Às vezes o corpo não aguenta mais. No livro digo que podemos ser mais ativos no processo de cura. Há especialistas que falam exatamente disso, da cura do corpo através da visualização. Não se pode pôr de parte a medicina, mas já não se trata só o físico mas a parte emocional, fiz isso muito também. Os médicos estão a fazer a parte deles, o que é que eu posso fazer para me salvar, como é que posso contribuir. Se posso, na véspera de uma cirurgia, meditar, visualizar que vai correr tudo bem, cuidar da alimentação, descansar, tirar da nossa vida tudo o que é tóxico, encarar como uma segunda oportunidade que a vida me está a dar, pensar, então, o que e que eu posso fazer diferente.
No momento em que senti o caroço, fui fazer a mamografia, não procrastinei. As mulheres têm muita tendência a sair, elas próprias, da lista de prioridades. São os miúdos, a casa, o trabalho. Cuida do teu corpo, da tua mente, das tuas emoções, é isso que nos faz adoecer, há especialistas que dizem isso, que o excesso de cortisol, o stress pode provocar desgaste das células e fazer- nos adoecer. Eu acredito nisso. Claro que há coisas menos positivas que acontecem e não podemos evitar, mas é importante voltar sempre ao autocuidado. Se não me faz bem, não o quero para a minha vida. Não sei se vou viver um ano ou 50, mas os anos que forem, vou viver.
Eu não sei se amanhã estou viva para voltar à praia, não posso desperdiçar a oportunidade de mergulhar. Sou mais consciente da mortalidade, no bom sentido.
O que é que mudou, qual é o seu autocuidado?
Aprendi a parar. Sou empreendedora, sempre trabalhei por conta própria, então produzir é não ganhar dinheiro, só que o problema disso tudo é que, às vezes, estamos em movimento mas não é da forma certa. Por causa desse medo estamos a fazer coisas que não são assim tão produtivas. Temos que nos permitir parar. Aprendi a parar, a disfrutar de ler um livro sem culpa, a eliminar coisas e pessoas tóxicas da minha vida. Às vezes, aquelas pessoas, situações, compromissos profissionais e não só, que nos custa dizer não. Não faço fretes. Quando somos mães há muitas responsabilidades, os treinos, a escola. Olhava para isso como um desgaste, agora olho com gratidão, com satisfação por estar ali naquele momento. Que bom que posso ter tempo para fazer o jantar para os meus filhos. Eu não mergulhava na praia porque a água é muito fria, agora não há vez em que vá à praia e não mergulhe. Eu não sei se amanhã estou viva para voltar à praia, não posso desperdiçar a oportunidade de mergulhar. Sou mais consciente da mortalidade, no bom sentido.
© Virginia Lopez
Como é que se consegue lidar com essa questão da mortalidade de forma positiva e não entrar num estado mais depressivo - o que seria perfeitamente normal?
É preciso equilíbrio e não cair. Não penso no cancro o tempo todo para não cair na depressão e no medo, porque não faz bem e porque estamos a viver no futuro. Ao mesmo tempo, não podemos deixar de pensar no que aconteceu. É um equilíbrio, de pensar e não pensar, de viver o presente mas também sem esbanjar e sem comprometer o futuro.
Fui para a reconstrução como se fosse um regresso ao dia antes de quando descobri que tinha cancro e não se regressa a esse sítio. Só que não há um regresso à mulher que somos, agora há uma nova Virginia
A Virginia fala muito também, nas redes sociais, do momento da reconstrução mamária, foi um momento muito importante para si?
No momento em que soube que ia fazer mastectomia pensei mais na imagem do que na vida. Isso está certo também, não são coisas incompatíveis, a autoestima é super importante nas mulheres. A cirurgia plástica faz milagres e eu fiquei muito bem só que criei bastante expectativas e então, talvez de forma inconsciente, fui para a reconstrução como se fosse um regresso ao dia antes de quando descobri que tinha cancro e não se regressa a esse sítio. Só que não há um regresso à mulher que somos, agora há uma nova Virginia. Não é uma mama que vai definir a nossa feminilidade nem a nossa beleza mas é verdade que é uma parte importante, para mim era. Tive que aprender a conviver com este novo corpo que é um lembrete constante pelo que passei. É como as jarras japonesas que se partem, mas a verdade é que essa taça é mais bela do que a primeira, é diferente e única, gosto de olhar para mim, como essa taça em que a cicatriz a torna única, bela e diferente. É preciso olhá- la e aceitá-la. Ser forte é a única opção.
Quando a Virginia pensa no futuro, o que é que imagina para a sua vida?
Um dos grandes planos que tínhamos era viajar de avião assim que acabasse a quimioterapia, era simbólico ter criado esse plano. Mais do que pensar a longo prazo, é pensar em planos que queremos fazer. Antes pensava 'em grande' .Não é que tenha deixado de sonhar, mas sonho diferente, vivo mais o presente, então não preciso de coisas grandiosas. Vejo-me muito a fazer o que faço hoje, a escrever, a acompanhar os meus filhos, a viajar.
Virginia em Roma com o marido e os filhos © Virginia Lopez
Como é que acha que vai ser a receção do público ao seu livro?
Espero que seja uma boa receção porque é um livro de um renascimento. Este livro é uma viragem ao tipo de literatura que eu gosto, mais virada para o romance, não é romance mas tem esse tom, toca temas de mulheres e das emoções, o universo onde eu gosto de estar. Este livro é uma ode à esperança e à vida, por isso, mesmo que possa emocionar, não é contado desde a perspectiva da vítima, é contado da perspectiva da superação e da aprendizagem. Espero que inspire. E que possa acariciar o coração. A coisa mais bonita que pode acontecer é entregarmos o livro ao mundo e que ele tenha o seu próprio caminho. Que em Portugal seja acolhido e que possa abrir fronteiras para o meu país.
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