Apesar de ser um tipo de cancro pouco divulgado na sociedade e mesmo entre a comunidade médica, o número de novos casos e de mortes por ano não é de todo menosprezável. A nível mundial, este cancro é responsável por mais de 650 mil novos casos por ano e por uma mortalidade que é cerca de metade. Na Europa, o número de novos casos é de aproximadamente 250 mil (cerca de 4% do total da incidência de cancro) para 63 mil mortes. Em Portugal, se considerarmos dados de 2018 e o cancro da cavidade oral, faringe e laringe, o número de novos casos é de 2.380 para 1.089 mortes, colocando este tipo de cancro no top 10 em termos de incidência (7.º) e mortalidade (10.º).
Os principais fatores de risco ou de maior suscetibilidade são a idade (acima dos 50-60 anos), o sexo masculino, os estilos de vida (tabaco, álcool, défices vitamínicos, má higiene oral), infeção viral crónica (vírus do papiloma humano – HPV – e Epstein-Barr), exposição ocupacional/profissional (agentes químicos, pó da madeira/cortiça, etc.), radiação ultravioleta por exposição solar (cancro da pele), herança genética, entre outros.
No entanto, a maioria dos casos está relacionada com hábitos tabágicos e/ou alcoólicos marcados que, associados, ainda potenciam mais o risco de desenvolvimento deste cancro. Mais recentemente, tem vindo a observar-se um crescimento do número de casos associados à infeção pelo HPV. Em regra, este tipo de cancro apresenta uma epidemiologia particular, com um aparecimento numa idade mais precoce, potencialmente também relacionado com a transmissão pelo sexo oral, com uma localização preferencial pela orofaringe e com um prognóstico mais favorável (se ausência concomitante de hábitos tabágicos) e com uma melhor resposta ao tratamento antineoplásico.
Infelizmente mais de metade dos casos de cancro da cabeça e pescoço, incluindo o da cavidade oral, é diagnosticado numa fase mais tardia, fato que poderá comprometer o prognóstico.
É nesse contexto que se tornam fundamentais as campanhas de sensibilização para os efeitos nefastos do tabaco/álcool e para a importância de adoção de estilos de vida saudáveis, que incluem também uma dieta equilibrada, uma boa higiene oral e a evicção de comportamentos sexuais de risco.
Para além desta prevenção primária, torna-se igualmente relevante a sensibilização para o conhecimento e a necessidade de adquirirmos competências fáceis para a realização do autoexame da boca para o eventual diagnóstico destes tumores numa fase considerada ainda precoce e que permita uma abordagem terapêutica mais atempada e eficaz.
Este procedimento pode e deve ser realizado por qualquer um de nós, com uma periodicidade mensal e principalmente por pessoas com mais de 40 anos e com hábitos tabágicos e/ou alcoólicos marcados.
A técnica do autoexame oral consiste na inspeção visual e palpação, devendo ser realizada em frente ao espelho com uma boa iluminação. Existem várias estruturas anatómicas que devem ser pesquisadas e a ordem é indiferente. Para facilitar a automatização, poderá ser adotada a mnemónica BLLPP (bochecha, lábios, língua, pavimento da boca e palato).
Durante o exame objetivo deverão ser identificados eventuais aspetos considerados anormais em relação ao seu padrão e duração habitual (superior a duas semanas), nomeadamente:
Alteração da coloração da pele ou mucosas (revestimento interno da boca), incluindo da língua; Alteração do paladar; Mau hálito; Boca seca e ardor oral; Aftas, bolhas, fissuras e feridas de difícil cicatrização; Dor de difícil controlo, sem razão aparente e com pouca resposta à terapêutica analgésica do domicílio (incluindo dor de garganta, dor aquando da deglutição da água/alimentos e a dor referida ao ouvido); Tumefações, caroços ou regiões endurecidas da região do pescoço; Mobilidade dentária localizada.
De forma a sistematizar o autoexame oral poderá seguir os seguintes passos:
1 – De frente para o espelho, lave a boca, toque suavemente com as pontas dos dedos em toda a face para ver se há algum sinal que não havia notado anteriormente.
2 – Puxe o lábio inferior para baixo e apalpe a mucosa. Em seguida faça o mesmo com o lábio superior.
3 – Com o dedo indicador, examine os dois lados internos da bochecha. Ainda com a ponta do dedo indicador, examine a gengiva.
4 – Introduza o dedo indicador por baixo da língua e o polegar da mesma mão por baixo do queixo. Em seguida, procure tocar todo o pavimento (a base) da boca.
5 – Ponha a língua para fora e observe a parte de cima. Repita a observação com a língua levantada até o céu da boca. Em seguida, puxe a língua para esquerda e depois para a direita.
6 - Até aqui, esteve a examinar os lábios e a mucosa da boca. Deverá procurar por aftas, bolhas, fissuras e feridas de difícil cicatrização, habitualmente brancas e / ou vermelhas.
7 – Examine o pescoço. Compare os lados direito e esquerdo e veja se há diferenças entre eles. Veja se existem tumefações, caroços ou regiões endurecidas.
8 – E, finalmente, introduza o polegar por debaixo do queixo e apalpe suavemente todo o seu contorno inferior.
Apesar da sua pertinência, este autoexame da boca não substitui a observação clínica realizada por um profissional de saúde devidamente credenciado para o efeito.
Vivemos tempos difíceis e de alguma incerteza, mas existe vida para além da Covid-19, assim como existem doenças para além da Covid-19. Nesse sentido, não podemos (nem devemos) negligenciar a nossa saúde oral. O diagnóstico precoce do cancro da cavidade oral é muito importante, e cada um de nós tem, em articulação com os profissionais de saúde, um papel primordial para interferir, de forma decisiva, com a história natural desta doença.