"A anorexia nervosa é uma doença mental que afeta o comportamento alimentar, mas que se traduz em evidentes sinais físicos como a perda de peso e magreza extrema, que a médio e longo prazo pode levar à falência de vários órgãos e das funções vitais, e até morte", explica Ana Isabel Ferreira, Nutricionista no Hospital CUF Viseu, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.
De modo a ficarem magros os pacientes - na sua maioria do sexo feminino (95% de todos os casos) - recorrem a dietas restritivas que resultam em perdas de peso abaixo de 85% do que seria esperado, ou a valores de índice de massa corporal (IMC) abaixo de 17,5 kg/m2 - medidas extremas, com impacto a nível físico, podendo levar a obstipação, dor abdominal, amenorreia, fraqueza e intolerância ao frio.
Já a nível psicológico é frequente a manifestação de sintomas como depressão, ansiedade, tristeza, baixa autoestima, isolamento social, irritabilidade e insónias.
Entretanto, a nível comportamental é comum a ocultação de alimentos, simulação de refeições e uma recusa ou preocupação irracional de comer em público.
Paradoxalmente, e apesar da sua magreza extrema, estes pacientes negam a sua condição, colocando em causa o acesso ao tratamento o que nos casos mais graves pode levar à morte.
De modo a tentar entender todas as subtilezas e características deste transtorno, Ana Isabel Ferreira explica na entrevista que se segue tudo o que tem de saber sobre a anorexia nervosa.
O que é a anorexia nervosa?
A anorexia nervosa é uma doença que se caracteriza por se verificarem em simultâneo três condições:
- Restrição da ingestão de energia em relação às necessidades, o que pode levar a um peso corporal significativamente baixo para a idade, sexo e trajetória de desenvolvimento, e a problemas de saúde;
- Medo intenso de ganhar peso ou de ficar gordo, ou comportamento persistente que não permite o ganho de peso, mesmo já tendo um peso significativamente baixo;
- Distorção ou perturbação da imagem corporal, nomeadamente da perceção do seu peso e forma corporal ou autoavaliação indevida do peso corporal, ou ainda não reconhecimento da gravidade do baixo peso corporal atual.
Apesar do termo anorexia significar perda de apetite, na anorexia nervosa tal situação não existe, pois os doentes sentem fome, mas recorrem a todos os mecanismos possíveis de 'enganar a sensação de fome'. Por outro lado, há casos em que o Índice de Massa Corporal (IMC) pode estar acima de 18,5Kg/m² - limite mínimo aceitável.
Dra. Ana Isabel Ferreira© DR
É uma doença física ou mental?
Esta doença encontra-se descrita no Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria, e também está identificada na Classificação Estatística internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde, da Organização Mundial da Saúde, como doença de 'Transtorno da Alimentação'.
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Logo, a anorexia nervosa é uma doença mental que afeta o comportamento alimentar, mas que se traduz em evidentes sinais físicos como a perda de peso e magreza extrema, que a médio e longo prazo pode levar à falência de vários órgãos e das funções vitais, e até morte.
E os fatores de risco?
A investigação demonstra que é causada por interação complexa de fatores genéticos, biológicos, comportamentais, psicológicos e sociais. Por isso, poucos fatores de risco para anorexia nervosa foram identificados, além de ser do sexo feminino. Verifica-se também que é mais comum em famílias onde já ocorreram casos de anorexia nervosa ou de outras doenças do comportamento alimentar. Os ideais de beleza em torno da magreza e a forte pressão para para atingir esses ideais veiculada pelos meios de comunicação social, pares ou mesmo família, colocam as mulheres, e em particular as adolescentes, em maior risco.
Quais são as causas por trás do seu aparecimento?
Sendo de causa multifatorial, a anorexia nervosa é mais do que uma preocupação estética, sendo vista como uma tentativa desesperada de assumir o controlo na vida.
É comum que as pessoas com anorexia nervosa sejam exigentes consigo próprias, meticulosas e compulsivas; por outro lado, a baixa autoestima também é frequente, sendo que neste caso o assumir que o seu valor pessoal gira à volta do peso e imagem corporal. Por outro lado, o perfeccionismo, o autocriticismo e a sensibilidade à rejeição ou avaliação dos outros são traços de personalidade comuns.
Muitas vezes, o fator precipitante são acontecimentos de vida marcantes, como mudanças de vida (mudança de escola, emprego ou residência), abusos, conflitos familiares, divórcio dos pais ou companheiro, dificuldades nos relacionamentos íntimos, entre outros.
Qual é a idade de maior incidência desta doença e quem tende a ser afetado?
A incidência da anorexia nervosa é maior na adolescência e jovens adultos, mas pode ser identificada pela primeira vez na infância ou já em plena idade adulta (em pessoas com mais de 40 anos).
Além de poder ser identificada em qualquer idade, a anorexia nervosa pode ocorrer em pessoas de ambos os sexos, de qualquer raça ou etnia ou condição social. Contudo, as mulheres tendem a ser mais afetadas. Por outro lado, raramente ocorre em sociedades com escassez de alimentos, sendo muito mais frequente em sociedades industrializadas dos países ocidentais, e em pessoas com maior nível de educação e provenientes de classes sociais de médio ou alto nível socioeconómico.
Os homens também sofrem de anorexia?
Sim, a anorexia nervosa não é uma doença que aparece exclusivamente em mulheres: também atinge homens em todas as idades, embora a incidência seja muito menor. Em termos gerais, por cada 10 novos casos de anorexia nervosa, 1 é em homens.
Quais são os principais sintomas associados a esta doença?
O interesse repentino por dietas e por perda de peso são inicialmente os primeiros sinais; muitas vezes gostam de cozinhar e preparam refeições mais sofisticadas para outras pessoas, colecionam receitas de baixas calorias, manifestam interesse e pesquisam sobre dietas, composição dos alimentos e técnicas para diminuir aporte calórico dos alimentos ou receitas; posteriormente manifestam-se comportamentos como esconder ou descartar alimentos não consumidos, contar calorias dos alimentos consumidos, pesar-se várias vezes ao dia, recusar ir a eventos que envolvam refeições, não comer junto à família ou outras pessoas; podem ainda recorrer ao uso de diuréticos, laxantes, medicamentos para emagrecer, indução de vómito ou exercício físico intenso, como forma de eliminar alimentos e energia consumida.
É habitual a perda de peso acentuada num curto período de tempo que não é reconhecida ou aceite pelo doente, que continua a procurar manter a perda de peso. A recusa de tratamento é frequente, mesmo após aparecerem sinais e sintomas de doença como atraso da primeira menstruação (menarca) ou ausência de menstruação (amenorreia) em mulheres em idade reprodutiva, obstipação e desconforto abdominal, edema (inchaço), cabelo fino, intolerância ao frio, alterações na frequência cardíaca e na tensão arterial, alterações hormonais ou mesmo depressão.
Como é feito o diagnóstico?
A procura de ajuda é quase sempre por imposição de familiares ou amigos, pois mesmo admitindo perda de peso o doente habitualmente recusa procurar ajuda médica.
O diagnóstico é feito por avaliação médica, onde são avaliados dados antropométricos como o peso, altura e determinação do IMC e sua adequação para a idade e sexo. São avaliados também comportamentos e, em particular os relacionados com a alimentação, perceção em relação ao corpo, ou mesmo o recurso a questionários; são solicitados exames com a finalidade de verificar a presença de problemas decorrentes da anorexia nervosa. O médico descarta ainda a possibilidade de outros distúrbios ou problemas de saúde.
A pessoa é diagnosticada com anorexia nervosa quando preenche os critérios da doença.
A anorexia nervosa não é uma 'tendência' ou uma escolha individual. É uma doença complexa, sendo que, mesmo com ajuda clínica especializada, ocorrem recaídas com frequência e pouco mais de metade se podem considerar 'curados'
Há um peso mínimo que o paciente tem de atingir para ser considerado anorético?
Considera-se que uma pessoa tem peso abaixo do peso saudável e desejável quando tem menos de 85% do peso considerado normal para a idade, altura e sexo, ou seja, quando o IMC é ≤ 17,5Kg/m² em adultos, ou ≤ percentil 5 em crianças e jovens. Contudo, outros fatores como desenvolvimento ponderal habitual e corporal esperado são também relevantes.
Em termos de gravidade, o Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais faz referência aos seguintes níveis em adultos:
- Leve: quando o IMC é igual ou superior a 17 kg/m²;
- Moderada: quando o IMC está entre 16 e 16,99kg/m²;
- Grave: quando o IMC está entre 15 kg//m² e 15,99Kg/m²;
- Extrema: quando o IMC é inferior a 15 kg/m².
Existe uma fobia real da comida? Esse medo manifesta-se através de rituais?
Não é bem uma fobia real aos alimentos, mas sim ao ganho de peso que o consumo alimentar pode provocar, pois manifestam um medo extremo de 'engordar'. Como já referido anteriormente, quem tem anorexia nervosa procura 'enganar a fome' e só numa fase muito avançada da doença se verifica ausência de fome; por isso, recorrem a todas as técnicas possíveis para ultrapassar essa sensação, desde beberem constantemente água, até induzir o vómito após consumo de algum alimento que consideram mais calórico.
É habitual a presença de rituais ao nível da aquisição, consumo e rejeição de alimentos: muda frequentemente o local e prefere grandes superfícies para comprar alimentos, onde dificilmente se é reconhecido, nunca come no local onde compra alimentos e faz listas programadas de alimentos a adquirir, após exaustiva investigação e comparação de nutrientes e de composição nutricional; em casa, procura fazer as refeições sozinho ou diz que já fez a refeição; quando na presença de outros, corta os alimentos e espalha-os por todo o prato, e come muito devagar; também é comum esconder alimentos quando ainda está à mesa, que depois descarta ou esconde.
Como se trata um doente que sofre deste transtorno alimentar?
A intervenção de diferentes profissionais de saúde é imprescindível no tratamento da anorexia nervosa, nomeadamente o médico psiquiatra ou pedopsiquiatra, psicólogo e nutricionista. A intervenção de apenas um destes profissionais dificilmente será bem sucedida, é muito importante uma abordagem multidisciplinar.
A meta é a consciencialização da presença da doença, que através da psicoeducação e reeducação alimentar permita a ingestão de calorias e recuperação de peso, e a melhoria da autoimagem e autoestima. O recurso a medicação é frequente, mas só deve ser usada como coadjuvante da psicoterapia.
O tratamento deverá ser feito preferencialmente em ambulatório, recorrendo ao internamento apenas em casos graves.
É possível ultrapassar a anorexia sem ajuda clínica?
A anorexia nervosa não é uma 'tendência' ou uma escolha individual. É uma doença complexa, sendo que, mesmo com ajuda clínica especializada, ocorrem recaídas com frequência e pouco mais de metade se podem considerar 'curados'. O envolvimento da família e amigos no tratamento é fundamental, mas sem ajuda clínica é insuficiente para tratar a doença. É importante estar alerta e procurar ajuda especializada para que se possa instituir um plano de tratamento com o envolvimento de vários profissionais de saúde com o objetivo de ultrapassar a doença.
De entre as doenças de comportamento alimentar, a anorexia nervosa é a que apresenta a maior taxa de mortalidade, e é uma das principais causas de morte entre adolescentes e jovens adultos
Os meios de comunicação e as redes sociais fomentam este distúrbio?
A influência dos meios de comunicação e redes sociais no aparecimento da anorexia nervosa e de outras doenças do comportamento alimentar ainda não está devidamente estudado, mas tem mostrado evidência de que a divulgação e a promoção de corpos ideais baseados na magreza associando-os a felicidade, sucesso ou satisfação pessoal, podem desencadear mudanças no comportamento alimentar, por internalização de padrões de magreza, que na presença de problemas psicológicos como depressão, ansiedade e stress podem contribuir para o início da doença. Estas influências parecem ser maiores nas pessoas que já têm diagnóstico de anorexia nervosa.
O estigma negativo associado à obesidade e aos obesos, que frequentemente também está presente nestes meios, também contribui para estes distúrbios do comportamento alimentar.
Há cura para a anorexia ou é uma doença que o paciente 'carrega' para a vida toda?
O tratamento apresenta melhores resultados em crianças e adolescentes do que em adultos, e também quando é iniciado numa fase mais precoce da doença, mas é possível recuperar-se da anorexia nervosa mesmo que a doença já se manifeste há vários anos. Diversos estudos estimam que cerca de metade das pessoas conseguem recuperar desta patologia. A recuperação é quase sempre longa e desafiadora, sendo necessário um trabalho de equipa e envolvimento da família que apoie o tratamento.
Qual é a taxa de mortalidade associada a este distúrbio?
De entre as doenças de comportamento alimentar, a anorexia nervosa é a que apresenta a maior taxa de mortalidade, e é uma das principais causas de morte entre adolescentes e jovens adultos.
Encontram-se diferentes taxas de mortalidade em vários estudos, numa média de 5% e, sem tratamento, aproximadamente 10% das pessoas com anorexia grave morrem. Em Portugal, num estudo feito entre 2000 e 2014, morreram 25 pessoas com anorexia nervosa, maioritariamente mulheres adolescentes e jovens.
A anorexia anda de 'mãos dadas' com outros transtornos como a bulimia ou 'binge eating'?
Há dois tipos de anorexia nervosa: a de tipo restritivo, em que há limitação do consumo alimentar sem consumo compulsivo de alimentos e sem purgação regular através da provocação do vómito ou consumo de laxantes e, quando muito, do aumento da prática de exercício; e a de tipo compulsão alimentar/ purgação, onde episódios de compulsão alimentar e de purgação estão presentes com alguma regularidade. Por isso, é possível encontrar associado à anorexia nervosa episódios de compulsão alimentar ('binge eating').
Que conselhos daria a alguém que sofre de anorexia ou de outro transtorno alimentar?
Sendo uma doença que dificilmente é admitida, o primeiro conselho seria a de ouvir a opinião dos seus familiares, amigos ou mesmo de outras pessoas que considere imparciais ou que lhe sejam neutras. Mesmo que não concorde com as preocupações que certamente serão manifestadas, deverá consultar um médico para esclarecimento da sua situação de saúde atual.
Perante a evidência de que há alterações comportamentais, que podem ou que já estão a comprometer a sua saúde, o segundo conselho será admitir a existência de doença e procurar ajuda médica especializada.
Por fim, procurar conhecer melhor a doença, procurando informação fidedigna e idónea.
No caso de pais com filhos afetados por este distúrbio, quais são os passos que estes devem seguir?
É natural que os pais fiquem preocupados e queiram ajudar, mas algumas atitudes e comportamentos bem intencionados podem ter efeitos contrários ao pretendido e até inviabilizar a procura ou abandono do tratamento.
Antes demais, os pais e demais familiares e amigos devem evitar fazer juízos de valor e sarcasmos sobre o comportamento alimentar. Mas há várias sugestões a ter em consideração:
- Informarem-se sobre a doença, para não cair em julgamentos errados;
- Perceberem que a visão e a perceção do corpo e comportamento são diferentes, por mais que tentem explicar e demonstrar.
Conhecendo melhor a doença, deverão ser proporcionados momentos em privado e sem interrupções para conversarem, de modo a permitir que a pessoa com anorexia nervosa se expresse, ouvindo-a com calma, atenção e empatia, e não desistir à primeira fuga à conversa.
Por fim, questionar como podem ajudar e disponibilizarem-se para procurarem ajuda e acompanhar a consultas e tratamentos.
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