A invenção da pílula foi uma viagem sem retorno para muitas mulheres. Revolucionária, ajudou-as a reduzir o risco de alguns tipos de doença oncológica, deu-lhes a possibilidade de evitarem uma gravidez indesejada, de controlarem as dores menstruais e liberdade para amar. No entanto, a lista de potenciais efeitos secundários associados à toma do comprimido continua a suscitar dúvidas e alguma preocupação e, apesar de ser um dos métodos contracetivos mais usados em todo o mundo, tem perdido adeptas para outras alternativas sem hormonas.
Nos últimos anos, a crescente preocupação ambiental contribuiu para uma redução progressiva da dose de estrogénios e para o aparecimento da chamada 'contraceção verde'. Em 2021, o estudo Novidades Epidemiológicas sobre Tendências em Contraceção (NEST-C) dava conta de que 28% das mulheres já tinha ouvido falar sobre o impacto negativo dos estrogênios nos ecossistemas naturais e que seis em cada 10 inquiridas haviam pedido uma pílula com baixo impacto para o meio ambiente e vida animal.
Maria João Carvalho, ginecologista e obstetra no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, afirma ao Lifestyle ao Minuto que "estão descritos riscos para a saúde humana e dos organismos aquáticos associados aos estrogénios", particularmente o etinilestradiol. "O estetrol, um novo estrogénio, tem um perfil ambiental mais favorável que o etinilestradiol e pode ser um passo para auxiliar a melhoria das condições ambientais", aponta.
© Maria João Carvalho
Fale-nos sobre a evolução da contraceção.
Ao longo dos tempos foram desenvolvidas estratégias contracetivas. A civilização egípcia, por exemplo, criou pessários [dispositivos colocados na vagina para aliviar sintomas associados ao prolapso dos órgãos pélvicos] e esponjas vaginais. Já a descrição do preservativo remonta a 3000 depois de Cristo. Por sua vez, os gregos utilizaram várias plantas para prevenir gravidez. A primeira pílula hormonal - Enovid - foi aprovada nos Estados Unidos na década de 60 do século XX, inicialmente para alterações menstruais. O componente progestagénico das pílulas é o responsável pela inibição da ovulação. Ao longo dos anos foram desenvolvidos progestativos com menos efeitos secundários, mais seletivos e com diminuição da retenção de líquidos. A composição dos contracetivos combinados passou pela redução da dose do componentes estrogénico e, atualmente, estão disponíveis hormonas mais semelhantes às naturais e, mais recentemente, um estrogénio de origem fetal com perfil de segurança mais favorável.
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Em Portugal, quais os métodos contracetivos atualmente disponíveis?
Estão disponíveis contracetivos combinados (estrogénios e progestativo) por via oral, ou seja, a vulgar pílula, por via transdérmica ('patch') e por via vaginal. Dispomos de métodos com progestativo isolado por via oral, implante subcutâneo, injetável e dispositivos de libertação intrauterina. Para além destes métodos de base hormonal, existem outros não hormonais como o dispositivo de cobre e métodos barreira como os preservativos, com a vantagem de proteger contra algumas infeções de transmissão sexual. Por fim, existem os métodos de contraceção definitiva como a laqueação tubária, a remoção das trompas e a vasectomia que requerem uma intervenção no bloco operatório.
A contraceção deve ser adaptada à fase da vida reprodutiva da mulher
Quais os fatores a considerar na escolha do melhor método contracetivo?
A escolha do método contracetivo pela mulher deve ser alicerçada numa estratégia individual, integrando as expectativas, doenças associadas, estilos de vida e benefícios adicionais. Assim, a mulher, após esclarecimento, deverá optar pelo método que melhor se enquadra aos seus objetivos. Deste modo poderemos ter uma boa adesão ao método.
A contraceção da mulher deve ser reavaliada ao longo da vida? Qual o momento mais oportuno para fazer uma reavaliação?
A contraceção deve ser adaptada à fase da vida reprodutiva da mulher, até porque daí surgirão efeitos adicionais para além da contraceção. A avaliação da adaptação a um método deve ser realizada alguns meses após o seu início para ajustar algum tipo de efeito secundário ou mesmo a necessidade de mudar para outra opção. Além disso, ao longo dos anos podem surgir doenças que tornam um determinado método não elegível para a mulher. Integrando no ciclo de vida reprodutiva da mulher e iniciando na adolescência, os métodos hormonais podem ter um papel importante no controlo de menstruações irregulares, dores menstruais, fluxo abundante e também alterações dermatológicas como acne. Após a gravidez muitas mulheres optam por métodos de longa duração menos dependentes de uma toma diária que pode ser difícil encaixar numa rotina diária muito absorvente. Finalmente, próximo da menopausa, os métodos hormonais podem ajudar a controlar ciclos irregulares e fluxo mais abundante, evitando consequências mais graves para a saúde da mulher.
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E quanto a métodos naturais? O que é a 'contraceção verde'?
Os métodos naturais baseiam-se nas alterações fisiológicas do organismo da mulher e permitem inferir o período da ovulação e, portanto, de abstinência sexual. Assim, descreve-se o método do calendário, da temperatura corporal e do muco cervical. Estes métodos são menos eficazes que os métodos hormonais na prevenção de gravidez, dado que dependem de vários fatores, nomeadamente regularidade dos ciclos, interferência de fatores fisiológicos como amamentação. Também são difíceis de aplicar nos extremos da vida reprodutiva, isto é, na adolescência e na perimenopausa, quando as menstruações tipicamente não têm padrão regular.
Qual o impacto das hormonas nos ecossistemas naturais?
Os disruptores endócrinos são substâncias exógenas ou misturas que alteram a função dos sistemas endócrinos e têm consequências na saúde de um organismo intacto, o seu progenitor ou uma subpopulação. O etinilestradiol é o componente de mais de 90% das pílulas combinadas e estima-se que cerca de 700 quilos são descartados todos os anos para as águas. Estão descritos riscos para a saúde humana e dos organismos aquáticos associados aos estrogénios, particularmente o etinilestradiol. Apesar de estar descrita uma diminuição dos componentes estrogénicos nas águas, ainda há necessidade de melhorar a poluição química em Portugal. O estetrol, um novo estrogénio, tem um perfil ambiental mais favorável que o etinilestradiol e pode ser um passo para auxiliar a melhoria das condições ambientais.
A pílula é um método muito seguro de prevenção de gravidez
Há relação entre a contraceção e o risco de tromboembolismo venoso?
O componente estrogénico da pílula combinada está associado ao risco tromboembólico, mas sobretudo em doentes com alguns fatores, como excesso de peso, tabagismo e eventos trombóticos prévios. Para além disso, atualmente dispomos de outro tipo de estrogénios, com um perfil de segurança mais favorável. Caso exista contraindicação aos estrogénios, os métodos com progestativo isolado serão uma opção segura para a generalidade dos casos com este tipo de antecedentes.
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Quais os prós e contras da pílula?
A pílula é um método muito seguro de prevenção de gravidez. Atualmente, é de considerável importância aliar os benefícios não contracetivos, como regularização do ciclo menstrual e do fluxo, controlo da dor menstrual, prevenção de alterações a nível do endométrio, melhoria do acne e excesso de pelos, sobretudo a nível da face, entre outros. Por outro lado, devemos sempre enquadrar nos critérios médicos de elegibilidade que integram o método contracetivo nas diversas patologias e condições clínicas. Assim, em certas situações, a pílula não será o método mais vantajoso e poderá ser ponderada outra opção.
Quais os mitos que lhe estão associados?
Destaca-se o ganho ponderal, alterações a nível da mama, riscos oncológicos e mesmo modificação da sexualidade. A questão da ausência de menstruação associada a muitos métodos também está associada a crenças de perturbação da fertilidade futura. O esclarecimento destas ideias contribui claramente para a melhoria da adesão aos métodos contracetivos.
A contraceção de emergência é segura?
É um método menos seguro que a contraceção regular, mas ainda assim com taxas de eficácia entre os 75 a 95%. Esta taxa é muito influenciada pela precocidade da toma após a relação sexual não protegida ou não consentida. Mesmo assim, será a única forma de prevenção de gravidez quando não foi utilizado outro método ou falhou. Não existe limite de tomas e globalmente não está associada a efeitos adversos importantes nem contraindicações.
A escolha da mulher é o grande fator para adesão e manutenção do método
E para os homens, quais as opções?
Neste momento as opções para o homem são o preservativo masculino e a vasectomia. Provavelmente no futuro teremos outras opções que ainda estão em investigação. O preservativo é o único método que tem papel na prevenção de infeções sexualmente transmissíveis. A vasectomia, como qualquer método de esterilização, pode ser enquadrada quando o desejo reprodutivo terminou definitivamente.
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E porque é que existem inúmeros contracetivos para as mulheres, mas os homens estão cingidos ao preservativo e à vasectomia, por exemplo? O que é que existe em termos de investigação nesta área?
Atualmente, estima-se que 30% dos casais optem por este tipo de contraceção masculina. A comunidade científica tem tido um grande esforço na investigação neste sentido, particularmente desde a década de 90. Os regimes com métodos contracetivos masculinos baseados em hormonas foram largamente testados, mas apresentam uma supressão incompleta do processo de formação dos espermatozoides. Também se destaca o desconhecimento dos efeitos secundários a longo prazo. Os métodos não hormonais têm vantagem de não interferir com os níveis de testosterona e não apresentarem disfunção sexual. No entanto, apesar dos resultados dos estudos pré-clínicos serem promissores, necessitam de ser testados em larga escala antes de serem estudados em humanos, de modo a determinar a sua eficácia.
Partilhar a responsabilidade da contraceção tem um efeito positivo?
Mais do que partilhar a responsabilidade, é necessário e fundamental ajustar as expectativas da mulher e adaptar as suas condições clínicas às várias opções. A escolha da mulher é o grande fator para adesão e manutenção do método.
Por onde passa o futuro da contraceção?
Recentemente, foram já introduzidos novos contracetivos, desde implantes, anéis vaginais, patches transdérmicos e novos contracetivos combinados. A investigação na contraceção hormonal levou ao desenvolvimento de novas combinações com melhor perfil metabólico e diminuição do risco tromboembólico. Os desenvolvimentos futuros incluem a combinação de contracetivo com agente protetor de infeções de transmissão sexual. Os métodos não hormonais estão numa fase de investigação precoce, que pretendem identificar alvos do sistema reprodutor dos ovários e testículos, assim como a interação entre os gâmetas feminino e masculino. Espera-se que a introdução de novos métodos com benefícios adicionais para a saúde ajudem as mulheres e os casais com necessidades não colmatadas, de modo a terem acesso a uma grande diversidade de contracetivos que melhore a sua acessibilidade.
Considera que, no geral, os portugueses estão bem informados sobre os métodos de contraceção disponíveis e sobre qual o melhor para cada caso?
Este é o objetivo basilar do planeamento familiar. No entanto, é um trabalho contínuo e em constante atualização. A mulher em idade reprodutiva de hoje tem diferentes formas de obter informação comparando com a mulher de há 30 anos. Como tal, os profissionais de saúde, sociedades científicas e entidades governamentais devem veicular informação por diversas vias de forma correta e atual. O enquadramento da informação numa era digital certamente será um veículo facilitador. Contudo, deve alicerçar a informação adequada e credível.
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[Notícia atualizada às 14h06]