O que têm em comum Leah Williamson, jogadora de futebol e capitã do Arsenal e da seleção inglesa, a comediante Amy Schumer, a cantora Anitta ou a empresária e antiga apresentadora de televisão Raquel Prates? Todas elas são rostos conhecidos da endometriose, uma doença que afeta uma em cada 10 mulheres em idade reprodutiva e que pode demorar uma década até ser diagnosticada.
No dia em que será discutida no Parlamento uma petição pública apresentada pela Associação MulherEndo e assinada por 8.600 pessoas, que solicita a criação de uma estratégia nacional de combate à endometriose e adenomiose (espessamento da parede uterina), a ginecologista obstetra Filipa Osório, do Hospital da Luz, deixa o alerta: "O atraso no diagnóstico é uma das consequências da falsa ideia de que ter dor na menstruação é normal ou que esta passa depois de uma gravidez". "Ouvimos recorrentemente a família a desvalorizar as dores de uma adolescente, porque a mãe ou a avó passaram pelo mesmo, mas é importante desfazer esta ideia", frisa a especialista, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto.
© Filipa Osório
A endometriose é uma patologia ainda desconhecida por muitas pessoas. Em que consiste exatamente e como se manifesta?
Para percebemos o que é endometriose, é importante perceber o que é o endométrio, que corresponde ao tecido que reveste a cavidade uterina e que sofre alterações cíclicas ao longo do mês, proliferando e crescendo até iniciar a sua descamação, que se traduz pela menstruação. Na endometriose, estas glândulas crescem fora da cavidade uterina, o que faz com que estas menstruem nos locais onde se implantam, originando lesões de endometriose. Estas podem localizar-se em qualquer parte do corpo, sendo mais frequentes na cavidade pélvica, junto aos órgãos reprodutores (útero e ovários). Dependendo do local, podem manifestar-se de diferentes formas, podendo ser identificadas sob a forma de quistos, aderências, nódulos ou, em alguns casos, infertilidade.
Leia Também: Dor ginecológica. Quando é que devemos procurar uma 2.ª opinião médica?
Quais são as causas?
A endometriose é uma doença ainda não totalmente compreendida, tendo aparentemente uma causa multifatorial. Existem várias teorias para tentar explicar o seu aparecimento, mas nenhuma consegue explicar a totalidade dos casos. A teoria mais aceite é a da menstruação retrograda, em que há passagem de células de endométrio para a cavidade abdominal, através das trompas, e estas, sob influência de um sistema imunitário alterado, de agentes tóxicos a que a mulher é sujeita (seja por exposição ou pela alimentação), de stress e tudo isto associado a uma predisposição genética, faz com que se desenvolva a doença.
Quando uma mulher tem dor menstrual (dismenorreia) que interfere com o seu dia a dia, impedindo-a de fazer uma vida normal, significa que deve ser investigada e deve procurar ajuda diferenciada para perceber qual a causa da dor e diagnosticar ou excluir endometriose
Quem tem maior propensão a sofrer de endometriose?
São fatores de risco para a doença a hereditariedade, malformações do trato genital com obstrução do fluxo menstrual, maior exposição ao ambiente estrogénico, ou seja, primeira menstruação precoce, ciclos menstruais curtos e menopausa tardia. Simultaneamente, mulheres com um sistema imunitário comprometido, mais expostas a maior stress e piores hábitos alimentares, também poderão ter uma evolução mais desfavorável da doença.
É possível prevenir a doença?
Infelizmente não. No entanto, adotar hábitos de vida saudáveis e procurar um acompanhamento adequado permite preservar a qualidade de vida da mulher.
A que sinais devem estar atentas?
A endometriose manifesta-se maioritariamente por dor intensa associada à menstruação, ao evacuar, ao urinar ou nas relações sexuais, por vezes na ovulação e, nalguns casos, por infertilidade. Quando uma mulher tem dor menstrual (dismenorreia) que interfere com o seu dia a dia, impedindo-a de fazer uma vida normal, significa que deve ser investigada e deve procurar ajuda diferenciada para perceber qual a causa da dor e diagnosticar ou excluir endometriose. Ainda assim, muitas mulheres desvalorizam os seus sintomas por ouvirem em casa que a mãe ou a avó também tinham dores menstruais.
Como é feito o diagnóstico?
O diagnóstico da doença passa por saber ouvir as queixas das mulheres que nos procuram e fazer um exame objetivo e adequado. Depois, perante esta suspeita, podemos confirmar o diagnóstico através de uma ecografia de referência ou através de uma ressonância magnética nuclear. Sendo uma doença crónica que afeta as mulheres durante a sua vida reprodutiva, é fundamental que seja realizado um diagnóstico precoce para uma melhor orientação e preservação da fertilidade.
Leia Também: Falámos com um ginecologista sobre o que nunca teve coragem de perguntar
É preciso ser-se persistente para obter um diagnóstico? Em média, quanto tempo pode decorrer até uma mulher ser devidamente diagnosticada?
Infelizmente, ainda existe um franco atraso – em média de sete a 10 anos –, porque ainda é comum dizer-se que ter dor na menstruação é normal ou que esta passa depois de uma gravidez, ou até mesmo que a mãe e a avó também tinham, acabando por desvalorizar a gravidade da dor.
Muitas mulheres só descobrem a doença quando tentam e não conseguem engravidar. Porquê?
Porque é nessa altura que deixa a pílula e a endometriose se começa a manifestar. Em números gerais, cerca de dois terços das mulheres com endometriose não terão qualquer problema em engravidar. Apenas um terço vai precisar de ajuda neste caminho, o que habitualmente está relacionado com os casos mais graves.
Infelizmente, ainda não existe um tratamento 100% eficaz que permita a cura desta patologia e, sendo uma doença crónica, é crucial ensinar as mulheres a saber lidar com a doença e a controlar os sintomas
Cerca de um quarto das mulheres com endometriose pode sofrer de infertilidade. O diagnóstico precoce pode ajudar a alterar esta realidade?
Ter um diagnóstico precoce da doença permite controlar atempadamente a evolução da endometriose, diminuir o risco de evolução para doença grave com quadro de dor crónica incapacitante associado, o risco de envolvimento intestinal, urinário ou de outros locais, bem como o de infertilidade, e controlar atempadamente os sintomas evitando as sequelas de uma vida com dor. Possibilita o aconselhamento da doente a adotar hábitos de vida mais saudáveis e idealmente sob menos stress, a orientação da mulher para um centro de referência que a acompanhe ao longo das várias etapas da sua vida e da sua doença, atuando atempadamente e adequadamente quando necessário. Uma mulher com endometriose não tem de viver com dor. Deve ser diagnosticada precocemente e orientada corretamente de modo a ter qualidade de vida.
Os médicos de família estão sensibilizados para a importância do diagnóstico precoce da endometriose?
Existem muitos médicos atentos à doença, mas é fundamental dar mais formação aos cuidados de saúde primários, de modo a que cada vez mais saibam ouvir as queixas, investigar, desconfiar e orientar estas mulheres para centros de referência.
A endometriose tem cura?
Infelizmente, ainda não existe um tratamento 100% eficaz que permita a cura desta patologia e, sendo uma doença crónica, é crucial ensinar as mulheres a saber lidar com a doença e a controlar os sintomas.
Como se pode controlar a dor?
Podemos atuar de várias formas. No campo dos hábitos de vida saudáveis, uma alimentação anti-inflamatória vai reduzir a inflamação pélvica e as queixas de dor. A redução dos níveis de stress e a prática de exercício físico também são fatores importantes. Mas cada caso é um caso. Cada doente tem de ser estudada particularmente e de acordo com os seus objetivos, as suas queixas e a gravidade da doença. Tendo todos estes fatores em conta, é definido um tratamento. Uma mulher com filhos e que procura qualidade de vida é diferente de uma mulher com dor e sem filhos que procura fertilidade e uma vida sem dor.
Leia Também: Adeus, pílula. Olá, 'contraceção verde'? O que é e como funciona
Que tratamentos existem para já e que esperança há? Quais as perspetivas?
Se a mulher não apresenta contraindicação para uma terapêutica médica e não pretende engravidar, tem indicação para iniciar terapêutica hormonal. Ou seja, inicia a toma de uma pílula para atrofiar o endométrio, que se encontra fora do útero, de modo a tentar 'adormecer' a endometriose e a controlar os sintomas, melhorando a qualidade de vida das doentes. Por outro lado, se a mulher pretende engravidar, deve interromper a terapêutica hormonal, fazendo-se uma vigilância de sintomas e da doença durante as tentativas e até obter uma gravidez. No entanto, se a dor é controlável e a doença está estável, mas a doente não consegue engravidar, deve ser equacionada a avaliação por uma equipa de infertilidade. No contexto atual, a mulher, muitas vezes, protela a gravidez para uma fase mais tardia da vida. Numa mulher com endometriose, em que a inflamação da doença pode por si só deteriorar a reserva ovárica/função ovárica, podendo haver mesmo envolvimento dos ovários e das trompas pela endometriose, devemos cada vez mais e mais cedo alertar para a possibilidade de preservar óvulos através da criopreservação, o que pode ser realizado seja em pré-cirurgia ou apenas porque a mulher ainda não pretende engravidar.
Quais são as indicações para a cirurgia?
Caso a dor seja incapacitante ou a doença agressiva e com envolvimento de órgãos (intestino, bexiga e uretra, por exemplo), a cirurgia deve ser equacionada e discutida com a doente. Nestes casos, a laparoscopia é o método 'gold standard' para o tratamento adequado da doença. Atualmente, dispomos de equipamentos de laparoscopia e cirurgia robótica, com elevada qualidade de imagem e instrumentos inovadores que permitem abordagens cada vez mais precisas, eficazes e seguras.
Que cuidados diários devem ter estas mulheres?
Procurar adotar estilos de vida saudáveis, reduzir o stress diário e procurar apoio diferenciado numa consulta específica de endometriose.
Leia Também: Sexo na gravidez: Pode ou não? Especialista responde
De que forma é que a endometriose impacta o dia a dia das doentes?
Se não estiver controlada pode impactar todas as dimensões da vida da mulher, afetando o bem-estar físico e emocional. Viver com dor afeta a vida familiar, profissional e a relação com os outros.
Ouvimos recorrentemente a família a desvalorizar as dores de uma adolescente, porque a mãe ou a avó passaram pelo mesmo, mas é importante desfazer esta ideia, deixando de a passar às gerações mais novas
Esta doença limita a sexualidade?
Um dos principais sintomas na endometriose é a dor na relação sexual, seja na penetração, na relação profunda ou no orgasmo. Associado à dor, a pílula pode diminuir a libido e a lubrificação. Se a mulher já sabe que vai ter dor, é normal que evite ter relações para não sofrer. Este fator pode interferir gravemente na relação do casal.
Que mitos ainda persistem sobre a endometriose?
O principal mito prende-se com a ideia de que ter dor menstrual (dismenorreia) é normal. Quando a dor nos impede de ter uma vida normal, interferindo com o nosso dia-a-dia e a qualidade de vida, é crucial que seja investigada. O atraso no diagnóstico é uma das consequências da falsa ideia de que ter dor na menstruação é normal ou que esta passa depois de uma gravidez. Ouvimos recorrentemente a família a desvalorizar as dores de uma adolescente, porque a mãe ou a avó passaram pelo mesmo, mas é importante desfazer esta ideia, deixando de a passar às gerações mais novas, para que possamos detetar esta doença mais cedo e adotar o tratamento adequado.
Que conselhos deixa a estas mulheres?
Provavelmente o caminho até ao diagnostico não foi linear e geralmente moroso. Se finalmente tem o diagnóstico, está na fase de aprender a viver com endometriose, pois existem inúmeras coisas que pode fazer para melhorar a sua qualidade de vida e controlar a doença. Deve, por isso, ser acompanhada num centro de referência de endometriose por uma equipa multidisciplinar. No fundo, o tratamento da mulher com endometriose deve atuar em várias dimensões, de modo a restabelecer o bem-estar físico e psíquico da mulher. É importante não só controlar a doença, mas também perceber as dúvidas e os objetivos da doente, de modo a estabelecer um plano de ação adaptado ao seu caso. Tem sido desenvolvido um trabalho incansável por parte da Mulherendo - Associação Portuguesa das Mulheres com Endometriose em Portugal. É uma associação que prima não só pela divulgação, mas também pela orientação e apoio de todas as mulheres que a procuram. Nos dias de hoje fala-se mais de endometriose também pelo excelente trabalho que tem sido realizado por esta associação, que é um recurso fundamental para qualquer mulher com este diagnóstico.
Leia Também: Do teste ao pós-parto, tudo o que as grávidas (e recém-mamãs) devem saber