Estima-se que a doença renal crónica (DRC) afeta cerca de uma em cada 10 pessoas em todo o mundo. É uma doença silenciosa e, por isso, quando os sintomas chegam, nem todos lhes dão a atenção devida. Em Portugal, os últimos dados conhecidos são de 2020 e mostram que a prevalência da DRC no país é de 20% e as previsões não são as melhores. Até 2040, poderá vir a tornar-se, a nível mundial, na quinta principal causa de morte prematura.
A ausência de medidas de rastreio ajuda a explicar o cenário sombrio que se vive por cá. Os doentes chegam cada vez mais às consultas em fase muito avançada da doença - o estadio 5 - e alguns em situações irreversíveis. "Mais de 20 mil doentes têm insuficiência renal em fase avançada", aponta André Weigert, assistente graduado sénior de nefrologia e coordenador de transplantação renal do Hospital de Santa Cruz/Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental, em entrevista ao Lifestyle ao Minuto. Adverte ainda o especialista que, muitos destes indivíduos, "pela idade e comorbilidades, não são elegíveis para a transplantação renal".
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O médico alerta também para o impacto significativo que a DRC tem tanto para doentes e famílias, como para o próprio sistema de saúde. Contas feitas, "cada doente que entre numa técnica de substituição de função renal custa ao erário público entre 30 a 35 mil euros".
Salientando a importância do diagnóstico precoce e tratamento adequado, André Weigert lamenta o "elevado grau de iliteracia nos portugueses". "Campanhas nas escolas e outros locais, bem como comunicações digitais, são da máxima importância para mobilizar a população, sobretudo para hábitos saudáveis", faz sobressair, salvaguardando que "não existem medidas populacionais exclusivas para a saúde renal".
Em que consiste exatamente a doença renal crónica?
Nascemos com cerca de um milhão de 'pequenas fábricas', denominadas nefrónios, onde o sangue é purificado de muitas substâncias nocivas e onde se remove o excesso de líquidos e de vários sais que consumimos, incluindo o sódio e o potássio. Em condições normais tudo funciona em harmonia, mantendo o denominado estado de homeostasia, em que existe uma coesão das quantidades e composição dos líquidos corporais. Quando o nosso principal órgão purificador funciona mal, começam a ocorrer vários tipos de desequilíbrios, incluindo acumulação de líquidos no organismo e aumento da concentração de certos componentes como o potássio, que podem ter consequências graves. A doença renal pode ser ligeira, moderada ou grave, sendo por vezes dividida em cinco fases. Na quinta fase impõe-se a terapêutica substitutiva da função renal por hemodiálise, diálise peritoneal ou transplantação renal, se não se optar por uma terapêutica conservadora, limitando-se a proporcionar medidas de conforto.
A maioria das doenças que lesam a função renal não causam dores
E quais as causas?
À medida que envelhecemos, o número de nefrónios vai diminuindo e reduzindo a função de outros órgãos, como o coração, músculo esquelético e pulmões. Várias doenças associadas ao envelhecimento e também a maus hábitos de vida (hipertensão, diabetes mellitus, obesidade, tabagismo, uso de anti-inflamatórios e outros medicamentos, uma hidratação inadequada) agravam e aceleram a perda de função renal associada ao envelhecimento. O grande médico andaluz Moisés Maimonides já dizia no século XIII: 'Só um em cada mil homens morre de morte natural; os outros morrem pelo que fazem de mal à sua saúde'. E isso porque ainda não havia 'fast food' cheia de sal e açúcar nessa altura.
Quais os sintomas que podem ajudar a obter um diagnóstico precoce , como tal, e tratamento adequado?
A maioria das doenças que lesam a função renal não causam dores. As dores lombares, se não forem derivadas de problemas musculares ou da coluna vertebral, podem ser causadas por cálculos renais, que são uma causa rara de insuficiência renal. Pelo contrário, a maioria dos doentes que apresentam cálculos renais tem uma função renal adequada. A maioria das doenças renais são silenciosas e têm manifestações indiretas e tardias, incluindo a hipertensão arterial de difícil controle, edemas (por exemplo: pés ou pálpebras inchadas) e fadiga, sobretudo quando se sobrepõe a anemia. Em fases tardias, o apetite pode desaparecer e causar náuseas e vómitos. Contudo, esses sintomas só ocorrem em fases avançadas, não servindo de alerta precoce. Muitas vezes o problema é detetado quando se fazem análises por outros motivos. Alguns doentes que perdem muita proteína na urina, ela fica espumosa e, mais raramente, pode existir sangue visível na urina (hematuria macroscópica). É mais frequente serem detetadas alterações nas amostras de urina, realizadas em avaliações de rotina, como na medicina de trabalho ou na admissão ao serviço militar. Por vezes, doentes são avaliados por terem outros familiares com doenças renais, existindo algumas formas geneticamente transmitidas, como a doença poliquística renal autossómica dominante do adulto.
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Esta é uma doença que normalmente surge entre que faixas etárias?
As idades avançadas são muito mais representadas, embora algumas formas de doenças renais, como doenças glomerulares e alterações congénitas do aparelho urinário, sejam mais frequentes em jovens. Portanto, a insuficiência renal pode ocorrer quer em crianças e adolescentes, quer em adultos jovens, quer em idosos. Contudo, é muito mais frequente em idosos.
Mais de 20 mil doentes [em Portugal] têm insuficiência renal em fase avançada
Qual o impacto desta patologia nos doentes?
Mesmo alterações ligeiras a moderadas da função renal podem agravar vários outros problemas, sobretudo cardiovasculares. Quando se atingem fases avançadas da doença renal, vários sistemas são afetados, com elevada relevância para o sistema cardiovascular e ósseo, embora a alteração do equilíbrio e homeostasia afete todos os órgãos.
De que forma é que a doença impacta a própria família dos doentes e o sistema de saúde?
O impacto é particularmente elevado quando é necessário instituir terapêutica substitutiva da função renal, com hemodiálise, dialise peritoneal ou transplantação renal. Qualquer dessas formas de substituição acaba por impactar bastante na família do doente e economicamente, pois cada doente que entre numa técnica de substituição de função renal custa ao erário público entre 30 a 35 mil euros, incluindo os custos com transportes. A transplantação renal, para além de melhorar a qualidade de vida, reduz os custos. Contudo, muitos doentes, pela idade e comorbilidades, não são elegíveis para a transplantação renal.
Qual o quadro da doença renal crónica em Portugal?
Mais de 20 mil doentes têm insuficiência renal em fase avançada, sendo que cerca de 60% fazem hemodiálise, cerca de 5% fazem diálise peritoneal e cerca de 35% receberam um transplante renal.
Como evitar que a doença progrida rapidamente?
O controlo da tensão arterial e diabético, evitar 'venenos' para os rins, como os anti-inflamatórios, e manter uma hidratação e alimentação adequadas são medidas genéricas muito importantes. Certas doenças renais agressivas do ponto de vista imunológico requerem intervenções com medicamentos como os corticoides e imunossupressores.
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Quais os tratamentos à disposição de crianças e jovens para que, na vida adulta, tenham um menor risco de complicações?
Há formas de insuficiência renal que ocorrem nos primeiros anos de vida, muitas vezes associadas a malformações congénitas nos rins que carecem de um acompanhamento apertado e cujas intervenções podem impedir ou atrasar em muitos anos o desenvolvimento de insuficiência renal cardíaca.
E para adultos? Qual a opção que acarreta menos riscos, sendo que, como disse, muitos doentes não são elegíveis para transplantação renal?
Quando os doentes são elegíveis, a transplantação renal é o método de eleição. Contudo, em doentes com elevadas comorbilidades ou idade, os riscos excedem os benefícios de um transplante e é menos arriscado manter uma forma de diálise (hemodiálise ou dialise peritoneal). Para pessoas muito debilitadas e com comorbilidades graves, pode ser mais indicada uma terapêutica conservadora, só de tratamento das queixas.
Como classificaria o grau de literacia dos portugueses acerca da doença renal crónica?
Penso que existe um elevado grau de iliteracia nos portugueses. Ainda assim, campanhas nas escolas e outros locais, bem como comunicações digitais, são da máxima importância para mobilizar a população, sobretudo para hábitos saudáveis. Não existem medidas populacionais exclusivas para a saúde renal. Assim sendo, se praticar um estilo de vida saudável, com foco numa alimentação saudável e hidratação adequadas, prática de desporto, evitação de hábitos nocivos como o tabaco, drogas recreacionais e álcool, não estará só a fazer bem ao rim, mas ao coração e a todos os outros órgãos, inclusive reduzindo o risco de certos tipos de cancro.
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