Estigma da epilepsia. "Desconstrução de falsas ideias é 1.º passo a dar"

De certeza que sabe tudo sobre epilepsia? Algumas dessas ideias não serão apenas mitos? Sabe reconhecer um ataque epiléptico quando vê um? Como ajudar? Estivemos à conversa com a neurologista Rute Teotónio.

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Ana Rita Rebelo
19/05/2023 08:40 ‧ 19/05/2023 por Ana Rita Rebelo

Lifestyle

Entrevista

Estima-se que mais de 50 milhões de pessoas sofram de epilepsia em todo mundo, sendo o quarto distúrbio neurológico mais comum a nível global. Em Portugal, entre 40 mil a 70 mil pessoas terão epilepsia, o que equivale a cerca de uma pessoa em cada 200. O que talvez não imagine é que estas pessoas têm menos oportunidades de emprego e há até quem prefira esconder a doença no local de trabalho.

Isto acontece porque existe a ideia de que estes indivíduos podem ter um desempenho profissional inferior quando, na realidade, cerca de 60 a 70% dos doentes conseguem fazer uma vida "normal e sem grandes restrições". A verdade é que "cerca de dois terços dos doentes com epilepsia não têm quaisquer crises com a toma adequada e regular da medicação", explica Rute Teotónio, neurologista e neurofisiologista do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, ao Lifestyle ao Minuto

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Para que seja possível ultrapassar o estigma, a também presidente da comissão executiva da delegação do centro da Liga Portuguesa Contra a Epilepsia defende que a estratégia deve passar pela "promoção da literacia junto da comunidade em geral e das empresas em particular". "A desconstrução de falsas ideias é seguramente o primeiro passo a dar", considera.

Notícias ao Minuto © Rute Teotónio 

"Outro aspeto importante é sensibilizar as empresas a procurarem tornar o seu ambiente laboral mais seguro e aberto, de forma a que as pessoas com epilepsia não se sintam receosas em partilhar junto das chefias e dos seus pares que padecem desta condição", acrescenta, sublinhando que "se esta abertura fosse já uma realidade, certamente que uma maior percentagem de pessoas 'na sombra' assumiria a sua epilepsia".

Felizmente, cerca de 60 a 70% dos doentes têm as suas crises bem controladas através da toma regular de medicação, podendo ter um estilo de vida dito 'normal' e sem grandes restrições

Comecemos por desmistificar o que é epilepsia.

A epilepsia é uma doença neurológica crónica caracterizada pela predisposição que uma dada pessoa tem de apresentar de forma recorrente e não provocada crises epilépticas.

É grave?

A sua gravidade é variável e depende primordialmente de três aspetos que, embora distintos, estão relacionados: a etiologia da epilepsia, o tipo e a frequência das crises epilépticas. Em regra, as crises epilépticas são fenómenos paroxísticos autolimitados e de curta duração que surgem de forma imprevisível. A gravidade que delas advém resulta essencialmente de eventuais quedas ou outros acidentes provocados pela presença de movimentos involuntários ou pela perturbação da consciência ocorridos durante o episódio. Felizmente, cerca de 60 a 70% dos doentes têm as suas crises bem controladas através da toma regular de medicação, podendo ter um estilo de vida dito 'normal' e sem grandes restrições.

Porque que é que se desenvolve epilepsia? 

As crises epilépticas resultam de uma atividade elétrica cerebral anormalmente excessiva que envolve parte ou todo o cérebro. No indivíduo com epilepsia existe uma perda dos normais mecanismos de regulação que garantem o adequado equilíbrio entre a inibição e hiperexcitabilidade neuronal. Na base da perda deste equilíbrio podem estar causas estruturais - um traumatismo craniano, por exemplo -, genéticas, infeciosas, metabólicas e autoimunes.

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Quais os sintomas iniciais?

Vão depender das áreas cerebrais envolvidas, sendo que isso é variável de pessoa para pessoa. As manifestações podem ser bastante subtis, apenas subjetivas e impercetíveis a terceiros. Podem passar por alterações transitórias sensitivas ou sensoriais, como um formigueiro ou perceção de odores que não são reais. Por outro lado, podemos ter episódios em que há alteração do estado da consciência e da responsividade, como se de breves lapsos de atenção ou de memória se tratassem. Por vezes, as crises podem ser clinicamente mais aparatosas, caracterizadas pela presença de movimentos involuntários de parte ou de todo o corpo.

Como é feito o diagnóstico?

O diagnóstico é essencialmente clínico, tendo por base a descrição que o doente ou testemunhas fazem das crises. Como tal, é de extrema relevância que, sempre que possível, o doente se faça acompanhar na consulta médica por pessoas que tenham já presenciado os eventos. Os telemóveis também nos oferecem hoje a possibilidade de gravar vários momentos do nosso dia a dia, constituindo igualmente uma potencial mais-valia quando o médico procura compreender natureza dos episódios descritos. No entanto, para melhor esclarecer ou consolidar o diagnóstico, bem como classificar o tipo de epilepsia e crises epilépticas, é habitualmente necessário a realização de alguns exames complementares de diagnóstico. Poderá ser solicitado o eletroencefalograma, que tem como propósito registar a atividade elétrica cerebral. Embora nem sempre mandatório, não raramente o clínico considera ainda necessário a realização de exames de imagem estrutural, como a tomografia computorizada e ressonância magnética cerebral.

A epilepsia não faz aceção de género, idade, etnia ou classes sociais, podendo surgir em qualquer pessoa e em qualquer idade, não havendo diferença de prevalência entre os sexos. Sabemos, no entanto, que a incidência é maior no primeiro ano de vida e depois dos 60 anos

A epilepsia pode ser prevenida?

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 25% das epilepsias podem ser prevenidas. A diminuição da sua incidência passa por uma mais eficaz prevenção de outras patologias que sabemos poderem levar ao aparecimento de crises epilépticas. Assim, a diminuição da prevalência de traumatismos crânio-encefálicos, de infeções do sistema nervoso central e de doenças cerebrovasculares, conduzem, por sua vez, a uma diminuição da incidência da epilepsia. De igual modo, melhores cuidados de saúde na gravidez e parto, permitem uma diminuição de lesões cerebrais ocorridas no período perinatal, lesões estas potencialmente epileptogénicas.

Qual a prevalência no mundo e em Portugal?

Segundo a OMS, reconhece-se que a epilepsia é uma das doenças neurológicas mais frequentes em todo o mundo. Em 2022, estima-se que existiam cerca de 50 milhões de pessoas com esta patologia. Em Portugal, admite-se que existam aproximadamente 40 a 70 mil pessoas com o diagnóstico de epilepsia, ou seja, uma em cada 200 pessoas padece desta patologia. Com o propósito de obter um valor mais preciso, a Liga Portuguesa Contra a Epilepsia tem a decorrer um estudo epidemiológico que nos permitirá obter dados atualizados para a nossa população. Por outro lado, a epilepsia não faz aceção de género, idade, etnia ou classes sociais, podendo surgir em qualquer pessoa e em qualquer idade, não havendo diferença de prevalência entre os sexos. Sabemos, no entanto, que a incidência é maior no primeiro ano de vida e depois dos 60 anos.

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As crises epiléticas podem manifestar-se de maneiras diferentes de pessoa para pessoa e a frequência pode também ser muito variável. De que forma?

A epilepsia pode ter manifestações bastante diversas, sendo o fator determinante para esta variabilidade o local cerebral envolvido durante a crise. Em relação à frequência, é igualmente muito díspar entre doentes. Sabemos que algumas etiologias - por exemplo: algumas malformações do desenvolvimento cerebral - estão associadas a uma maior probabilidade de pior controlo, podendo os doentes apresentarem crises diárias. Contudo, felizmente cerca de dois terços dos doentes com epilepsia encontram-se controlados, ou seja, sem quaisquer crises quando tratados adequadamente com um ou dois fármacos anti-crises.

Como devem ser tratadas?

Em regra, o objetivo do tratamento passa pelo controlo das crises epilépticas. Atualmente, contudo, e em situações muito particulares, reconhece-se a existência de algumas terapêuticas modificadoras da doença. Dito isto, os fármacos anti-crises são em regra a primeira linha no tratamento da epilepsia e a sua seleção deve ser feita tendo em consideração aspetos como o tipo de crises, o género, a idade e outras comorbilidades apresentadas pelo doente.

E nos casos em que os farmácos não são suficientes?

Nos cerca de 30% dos casos em que a terapêutica farmacológica não é suficiente para um eficaz controlo das crises, os doentes devem ser encaminhados para centros de referência para o tratamento de epilepsias refratárias que, em Portugal, existem nas cidades do Porto, Coimbra e Lisboa. Nestes centros poderão ser ponderados e estão disponíveis outras alternativas farmacológicas, cirúrgicas, de neuromodulação e dietéticas.

A maior parte das pessoas com epilepsia é intelectualmente tão capaz como as restantes

Como devemos atuar se estivermos próximo de uma pessoa com uma crise epilética? 

Se a crise for 'mais ligeira', sem queda ou movimentos convulsivos associados, mas associada a alguma confusão e comportamento estranho, devemos proteger a pessoa de um eventual perigo e dar o apoio necessário até à recuperação completa da consciência. No final, podemos procurar explicar à pessoa o que aconteceu de forma clara e calma. Se a pessoa apresentar uma crise convulsiva generalizada, em que há movimentos involuntários dos quatro membros e queda devemos: manter a calma e procurar controlar a duração da crise, olhando periodicamente para o relógio; proteger a cabeça da pessoa, colocando debaixo dela uma peça de roupa ou, se necessário, apoiá-la com as próprias mãos; quando os movimentos pararem, colocar a pessoa de lado e desapertar-lhe a roupa à volta do pescoço; e permanecer com a pessoa até que a mesma recupere completamente os sentidos e respire normalmente.

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Tão importante como saber o que fazer, é perceber o que não se deve fazer durante a crise. Nesse sentido, que comportamentos devem ser evitados?

Não se deve introduzir qualquer objeto na boca, nem tentar puxar a língua, não se deve tentar forçar a pessoa a ficar quieta, nem dar nada a beber até que a pessoa esteja completamente recuperada. Deve ser chamada a emergência médica se for a primeira crise da pessoa, se a crise convulsiva durar mais de cinco minutos - geralmente não ultrapassa os dois/três minutos -, se se observarem crises repetidas, sem recuperação dos sentidos no intervalo entre elas, se da crise resultarem ferimentos sérios ou se a pessoa tiver dificuldade em retomar a respiração normal no final da crise.

Estes doentes têm efetivamente a mesma capacidade de trabalho do que pessoas sem a doença?

Cerca de dois terços dos doentes com epilepsia não têm quaisquer crises com a toma adequada e regular da medicação. Por outro lado, só em situações excecionais é que a medicação vai levar ao aparecimento de efeitos secundários, que podem potencialmente comprometer as competências laborais. Importa ainda referir que a maior parte das pessoas com epilepsia é intelectualmente tão capaz como as restantes, obtendo iguais qualificações académicas. Assim, a grande maioria dos empregos é adequada às pessoas com epilepsia, apresentando as mesmas iguais capacidades de trabalho em relação às pessoas sem esta patologia. A Comissão Internacional para o Emprego da International Bureau for Epilepsy elaborou e publicou em 1989 um conjunto de princípios de boa conduta relacionada com o emprego e epilepsia, em que salienta que as faltas ao trabalho (absentismo) e os acidentes de trabalho (sinistralidade) não são maiores nas pessoas com epilepsia. É, no entanto, relevante notar que existem situações particulares (que não constituem a norma) em que é de facto necessário adequar as condições de trabalho.

A forma mais eficaz de ultrapassar os estigmas ainda enraizados em relação à epilepsia passa pela promoção da literacia junto da comunidade em geral e das empresas em particular. A desconstrução de falsas ideias é seguramente o primeiro passo a dar

E quando e como é que os locais de trabalho se devem adequar?

A adequação do local e condições de trabalho impõe-se obviamente quando a presença de crises traz um risco acrescido à integridade física do próprio e de terceiros. Esta problemática surge não apenas, mas principalmente, quando há necessidade de utilizar maquinaria e de conduzir. No processo de avaliação do risco é importante que alguém habilitado analise a condição médica particular do trabalhador, nomeadamente no que diz respeito à frequência e tipo de crises, procurando determinar que eventuais ajustes podem ser necessários para uma redução desses mesmos riscos. Os artigos 84 e 85 do Código de Trabalho português (trabalhador com capacidade reduzida e doença crónica, respetivamente) preveem na realidade a necessidade de adaptação do posto de trabalho e a criação de condições laborais que propiciem a igualdade no acesso ao emprego, promoção e carreira profissional. É também fundamental que seja assegurada a prestação de uma correta assistência no local de trabalho, no contexto de ocorrência de crises. Para tal, o empregador poderá, entre outras iniciativas, promover oportunidades de formação de todos os seus colaboradores no que diz respeito ao reconhecimento e atuação em caso de crises. Só após análise dos riscos inerentes à ocorrência de crises no local de trabalho e tentativa de correção dos mesmos é que devem ser consideradas restrições laborais. Estas restrições, se impostas, devem ser periodicamente revistas, para eventual suspensão.

Há profissões desaconselhadas para quem tem epilepsia?

Na realidade existem algumas profissões interditas a quem tem o diagnóstico de epilepsia, mesmo quando esta está bem controlada com a medicação. De entre este grupo fazem parte, por exemplo, os pilotos de aviação civil, condutores profissionais e elementos das forças armadas.

Como ultrapassar o estigma?

No que diz respeito à realidade laboral, a forma mais eficaz de ultrapassar os estigmas ainda enraizados em relação à epilepsia passa pela promoção da literacia junto da comunidade em geral e das empresas em particular. A desconstrução de falsas ideias é seguramente o primeiro passo a dar. Outro aspeto importante é sensibilizar as empresas a procurarem tornar o seu ambiente laboral mais seguro e aberto, de forma a que as pessoas com epilepsia não se sintam receosas em partilhar junto das chefias e dos seus pares que padecem desta condição. Se esta abertura fosse já uma realidade, certamente que uma maior percentagem de pessoas 'na sombra' assumiria a sua epilepsia, provando que o diagnóstico de epilepsia não é de todo necessariamente sinónimo de pior desempenho e de capacidade mais limitada no que diz respeito à execução das tarefas confiadas.

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