Covid-19: Pandemia pode criar situações de "pandemónio", avisam analistas

A propagação do Covid-19 e a iminência de uma pandemia de grandes dimensões pode afetar a geopolítica mundial e está a colocar governos perante problemas sociais de difícil resolução, segundo analistas.

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Lusa
27/02/2020 15:03 ‧ 27/02/2020 por Lusa

Mundo

Coronavírus

Uma pandemia pode criar situações de "pandemónio" e vários governantes temem a repercussão social da propagação incontrolada do vírus numa "aldeia global" onde os fenómenos não reconhecem fronteiras.

O Presidente norte-americano, Donald Trump, está preocupado com o impacto do novo coronavírus na sua tentativa de reeleição, em novembro próximo.

Trump impediu um cidadão dos EUA, que fora infetado no navio Diamond Princess, no Japão, de ser tratado no seu Estado natal de Alabama, telefonando ao senador Republicano Richard Shelby, para que se assegurasse do cumprimento da sua instrução.

Os analistas dizem que o impacto do Covid-19 nas eleições norte-americanas pode ser uma "faca de dois gumes": numa primeira hipótese, a economia dos EUA é afetada a longo prazo, fragilizando a posição de Trump, que tem usado a bandeira do desempenho económico; num segundo cenário, o surto tem uma curta duração, afetando a produção de bens durante alguns meses, com a oferta a retomar na véspera da eleição, de forma compactada, favorecendo a posição de Trump.

De acordo com o jornal norte-americano Politico, Trump já pediu aos seus conselheiros para analisarem todos os cenários e solicitou um relatório pormenorizado sobre medidas de emergência ao Centro de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC).

O CDC, num documento tornado público, alertou o Presidente norte-americano sobre o risco de "o sistema de saúde pública ficar sobrelotado, com elevadas taxas de hospitalização e mortes", alertando ainda para o impacto de uma pandemia nos sistemas de transportes.

O problema é global e a grande variável é saber qual a dimensão que ele vai atingir, diz José Pedro Teixeira Fernandes, investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-Nova).

Em declarações à Lusa, este especialista alerta para os riscos que os governos correm, se uma pandemia se espalha durante longos períodos de tempo.

"O problema é de grau", explica Teixeira Fernandes, referindo-se a uma situação que pode envolver muitos milhares de infetados num mesmo país, durante um longo período, afetando não apenas os serviços de saúde, mas também as cadeias de fornecimento de bens essenciais.

Para já, na Europa, onde os casos de infeção começam a multiplicar-se em várias regiões, os governos procuram mecanismos de contenção da doença, acionando mecanismos administrativos de isolamento do vírus.

Mesmo em França, onde há uma forte tradição de direitos individuais - que impossibilitam, por exemplo, que uma pessoa que decida desaparecer não possa ser procurada pela polícia, mesmo sob pretexto de "interesse familiar" - o Governo anunciou que irá proceder à obrigatoriedade de internamento para as pessoas infetadas.

O tema do internamento obrigatório de um doente infetado com um vírus altamente contagioso está a ser discutido em vários países, incluindo Portugal, onde os especialistas se dividem na leitura jurídica das soluções.

Constantino Sakellarides, especialista em Saúde Pública e que foi responsável da Direção-Geral de Saúde em Portugal, afirmou que a lei portuguesa permite a quarentena obrigatória de um doente infetado com vírus e prevê mesmo a possibilidade de se declarar o estado de calamidade, que deverá ser proposto pelo Governo ao Presidente da República.

Em sentido contrário, Francisco George, que também foi diretor-geral de Saúde, considera que será necessário fazer alterações à Constituição para instituir o internamento obrigatório por razões de saúde pública.

"Em Portugal, é altura de deputados da Assembleia da República alterarem a alínea h) do número 3, do artigo 27.º da Constituição, no sentido de passar a ser permitido o internamento obrigatório por motivos de Saúde Pública. Inadiável", escreveu Francisco George, num artigo de opinião recentemente divulgado no diário Público.

Caroline Barnett, professora de Saúde Pública na Universidade de Paris, diz que o risco deste género de medida aumenta com a dimensão do problema.

"O problema é quando o Estado procura o internamento obrigatório de centenas ou milhares de pessoas, muitas vezes sem assegurar as devidas condições para todos esses internamentos", disse Barnett à Lusa, referindo-se a um cenário que poderá ocorrer em vários países, a curto prazo.

Para esta especialista, uma situação incontrolada de propagação de vírus pode levar a um "pandemónio" político, com diversos governos a ter de reconhecer a incapacidade para lidar com milhares de mortos e sistemas de saúde deficitários nos meios para acolher milhões de infetados.

Na Europa, a Comissão Europeia procura soluções menos intrusivas do que o internamento obrigatório, com mecanismos de isolamento da propagação do vírus que evitem a necessidade de internamento compulsivo, nomeadamente através da ativação da "pool" de Proteção Civil Europeia -- uma organização estabelecida para agilizar uma coordenação de esforços entre os países membros para resposta rápida a catástrofes.

Uma relevante decisão política na comunidade europeia diz respeito ao encerramento de fronteiras no espaço Schengen, que a Comissão Europeia disse esta semana não estar ainda a ser considerada.

A comissária europeia para a Saúde e Segurança Alimentar, Stella Kyriakides, disse que a Organização Mundial de Saúde não aconselhou restrições na Europa, para justificar o afastamento desta solução.

José Pedro Teixeira Fernandes lembra que uma medida desse género vai contra o próprio espírito de Schengen, mas reconhece que uma situação de emergência a pode justificar, durante um curto período de tempo.

Os governos de Itália e França, cujos países fazem fronteira, anunciaram que estão atentos a esta possibilidade, depois de as províncias italianas de Lombardia e Veneto se terem visto fortemente afetadas pela propagação do novo coronavírus.

De resto, o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte, tem sido criticado pelas autoridades regionais pela forma mais relaxada como tem abordado a questão do coronavírus, criticando mesmo decisões locais de encerramentos de escolas e outros espaços públicos.

Conte tentou afastar receios de que o seu Governo não fosse capaz de conter o vírus, depois de ter sido forçado a admitir que um hospital no norte de Itália tinha tratado deficientemente um caso de infeção, contribuindo para a propagação do Covid-19.

Politicamente, a fronteira mais delicada é a que separa Itália da Áustria, dois países que estão em confronto aberto à volta da discussão do orçamento europeu e que parecem também ter diferentes visões sobre a melhor forma de conter o coronavírus.

O Governo austríaco já deu sinais de que gostaria de ver as fronteiras mais bem vigiadas, mas o Governo italiano já disse que não vê razões para suspender Schengen, pedindo à Comissão Europeia para libertar rapidamente o fundo de 232 milhões de euros para conter a propagação do Covid-19.

Diplomaticamente, o problema está também a servir de pretexto para regular o crescente fluxo de turistas chineses em algumas regiões asiáticas.

As autoridades de Singapura estão a travar a entrada de chineses no território, depois de o ministro do Negócio e da Indústria deste território ter anunciado que a área de turismo estava excessivamente dependente da China, usando as medidas de proteção contra o vírus para justificar medidas de médio e longo prazo na moderação da sua entrada.

Teixeira Fernandes recorda que o caso Covid-19 é uma forte ameaça para a posição da China, foco inicial da epidemia, no momento em que está a lançar o seu programa de expansão económica, sobretudo perante os Estados Unidos, com quem mantém uma guerra comercial há quase dois anos.

O especialista do IPRI-Nova lembra ainda um outro caso de um país em conflito com os Estados Unidos, o Irão, que também está a braços com um grave problema de propagação do vírus, que ficará igualmente fragilizado perante os seus inimigos.

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