Decisão política controversa cujo primeiro aniversário se assinala amanhã. Alguns dados da repressão severa e das suas consequências divulgados pela agência France-Presse.
Caxemira é um "barril de pólvora"
A Índia maioritariamente hindu e o Paquistão muçulmano travaram duas guerras pelo antigo principado de Jammu-Caxemira, situado nos Himalaias e de maioria muçulmana. Os dois irmãos inimigos, potências nucleares, reivindicam a região, que está dividida entre ambos, resultando o conflito da partição do Império Britânico da Índia em 1947. A China controla certas áreas na parte oriental.
Em 1948, numa das suas primeiras resoluções, a ONU pediu a realização de um referendo para que os caxemires se pronunciassem sobre a sua preferência. A votação nunca se realizou.
Há três décadas que uma insurgência separatista combate Nova Deli na parte de Caxemira sob a sua administração. A Índia acusa o Paquistão de apoiar estes grupos armados, nomeadamente servindo-lhes de base.
A rebelião, que levou a uma resposta musculada das forças indianas, já causou dezenas de milhares de mortos desde 1989, principalmente civis.
Índia e Paquistão trocam regularmente tiros de artilharia na sua linha de demarcação na Caxemira. Em fevereiro de 2019, um atentado suicida matou 40 paramilitares indianos e colocou os dois países à beira de uma nova guerra.
O que decidiu Nova Deli
Os nacionalistas hindus consideravam o estatuto especial de Jammu-Caxemira -- que lhe conferia uma relativa autonomia face ao Estado federal, com uma bandeira própria e uma Constituição -- como uma aberração histórica. O seu programa prometia revogá-lo há muito.
A autonomia de Jammu-Caxemira "apenas gerou terrorismo, separatismo, nepotismo e corrupção generalizada", considerou Narendra Modi, assegurando que a revogação do estatuto traria paz e prosperidade aos caxemires.
A modificação colocou a Caxemira indiana sob tutela direta de Nova Deli. O estado de Jammu-Caxemira ficou com o estatuto de território da União, o que lhe confere menos prerrogativas do que um estado federado, e foi dividido em dois: Jammu-Caxemira a oeste e Ladakh a leste.
Consequências no terreno
A mudança de estatuto foi acompanhada de uma vasta operação de segurança. Nova Deli destacou para Caxemira dezenas de milhares de soldados de reforço, apesar de a zona contar já perto de meio milhão de militares e ser uma das mais militarizadas do mundo.
Para evitar a contestação das populações locais, os sete milhões de habitantes do vale de Caxemira foram bloqueados em suas casas durante semanas, a sua liberdade de movimento foi severamente restringida e as concentrações proibidas.
As linhas de telefone fixas, as comunicações móveis e a Internet foram cortadas durante meses, isolando Caxemira do resto do mundo.
As autoridades indianas detiveram perto de 7.000 pessoas, incluindo três antigos chefes do executivo de Jammu-Caxemira. Centenas de pessoas continuam sob prisão domiciliária ou detidas, a maioria sem acusação.
Jovens disseram à AFP e a outros media estrangeiros que foram detidos e torturados pelos soldados. A Índia nega os seus relatos.
Com exceção de críticas da Malásia, da Turquia e da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Michelle Bachelet, a repressão indiana na Caxemira suscitou poucas reações oficiais no estrangeiro. A Índia considera Caxemira uma questão interna e recusa a internacionalização do dossier.
Situação atual
A vida quotidiana continua difícil em Caxemira. Ainda existem centenas de barreiras militares e o acesso à Internet é incerto e lento.
O impacto económico foi devastador. No final de 2019 tinham sido perdidos meio milhão de empregos na Caxemira indiana, segundo a Câmara de Comércio e Indústria local.
O novo confinamento decretado para lutar contra a pandemia do novo coronavírus agravou uma situação já dramática. As crianças praticamente não têm aulas há um ano.
As operações de segurança contra a insurreição aceleraram, deixando prever um balanço humano do conflito em 2020 mais alto do que nos últimos anos.
Por outro lado, a Índia concedeu a dezenas de milhares de pessoas de fora da região os mesmos direitos dos caxemires, para que possam comprar terras na zona. Críticos do governo acusam-no de querer modificar a longo prazo a demografia da região, com a vinda de mais hindus.
Opositores dizem ainda que empresas estrangeiras receberam concessões de mineração, em detrimento do respeito pelo meio ambiente.
As autoridades indianas impuseram hoje e quarta-feira o recolher obrigatório na parte que controlam de Caxemira, segundo uma ordem governamental, que justifica a medida com informações sobre protestos planeados por grupos anti-Índia para assinalar o dia 5 de agosto como um "dia negro".
Milhares de polícias e militares com espingardas de assalto e equipamento antimotim foram destacados por todo o território para evitar manifestações e as forças de segurança apenas permitem que saia de casa quem tem um passe especial emitido pelo governo.
Dezenas de jovens foram detidos nos últimos dias, antecipando a organização de protestos contra a Índia na região, disse um polícia que não quis ser identificado, citado pela agência norte-americana Associated Press.