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Degelo no Ártico abre oportunidade para nova rota comercial marítima

O Ártico perde 43,8 mil quilómetros quadrados de gelo todos os anos, uma realidade do aquecimento global que abre a possibilidade de uma nova rota marítima que revolucionaria os transportes globais, segundo especialistas ouvidos pela agência Lusa.

Degelo no Ártico abre oportunidade para nova rota comercial marítima
Notícias ao Minuto

08:12 - 23/03/21 por Lusa

Mundo Ártico

O degelo é irreversível, segundo o contra-almirante da Marinha Portuguesa Carlos Ventura Soares, que dirige o Instituto Hidrográfico, mas "neste momento ninguém consegue dizer quão rápido vai ser".

Uma consequência óbvia é o impacto no ecossistema do Ártico, mas também a abertura de "duas novas grandes áreas: a facilidade de acesso a recursos naturais e abertura de novas rotas marítimas".

Aquilo com que nações como a Noruega ou os Estados Unidos já contam é com a possibilidade de explorar recursos naturais que o degelo expõe e torna acessíveis nas suas zonas económicas exclusivas.

A possibilidade de navegar de forma segura pelo Ártico com rotas regulares "faria ao canal do Suez, na passagem do trânsito de mercadorias da Ásia para a Europa, o que o canal do Suez fez à rota do Cabo, que deixou de ser tão usada para muito trânsito do Índico para o Atlântico", afirma o diretor do Instituto Hidrográfico.

Ventura Soares salienta que poderão decorrer décadas até que haja condições de navegabilidade regular, o que "por enquanto ainda não houve", para além de "viagens experimentais limitadas ou apenas para portos locais".

Além de menos gelo, essas rotas precisariam de ter "capacidade de busca e salvamento em caso de acidente, pilotagem marítima, capacidade de limitar eventuais derrames. Enquanto isso não ocorrer, dificilmente poderemos falar de uma rota marítima perene e com possibilidade de utilização comercial, mesmo que dificilmente durante o ano inteiro, mas durante uma grande parte do ano", refere.

Do lado de algumas das maiores empresas de transporte marítimo ainda não é uma hipótese viável explorar uma rota ártica, mas do lado da chinesa Cosco, continua a haver "uma aposta no Ártico como forma de se diferenciar dos seus concorrentes mais diretos e tem a vindo a fazer mais algumas viagens sempre com grandes restrições", disse à Lusa o sócio-gerente da consultora SACONSULT Jorge D'Almeida, com mais de 40 anos no setor marítimo-portuário.

"A maior empresa do mundo quando se fala de contentores é a dinamarquesa Maersk, com o potencial de alterar o sistema mundial de transporte marítimo, que tentou e conseguiu fazer um teste da rota do Ártico em 2018, com uma travessia durante um dos meses em que ainda é possível, embora seja sempre necessário usar quebra-gelos e rebocadores para garantir que os navios passam com gelo disperso", apontou.

A Cosco, no entanto, tem feito avanços na exploração de uma rota ártica, mas com navios com capacidade máxima para três mil contentores, enquanto "os navios-mãe que fazem a rota da Ásia têm todos capacidade de 16 mil e, no caso dos maiores, 23 mil".

Isso é uma desvantagem económica, mas um incentivo é o facto de se poder encurtar o tempo de travessia Ásia-Europa em 14 dias ou mais e em transporte marítimo, "o custo financeiro da mercadoria retida durante o tempo de trânsito tem às vezes um impacto tão grande como o frete".

Jorge D'Almeida acredita que "não será nos próximos 50 anos" que os maiores navios do mundo poderão usar a rota ártica, até porque na rota tradicional que traz carga da Ásia para os portos do norte da Europa (Antuérpia, Roterdão e Hamburgo) via canal do Suez, pode fazer-se negócio pelo caminho com a passagem por entrepostos importantes, como Singapura.

Mesmo que ainda não seja uma realidade, é preciso agir já para salvaguardar o Ártico da cobiça económica dos estados, defendeu em declarações à Lusa a advogada norte-americana Kristina Gjerde, consultora do Programa Global Marinho e Polar da União Internacional para a Conservação da Natureza.

"No Ártico são as pessoas, a vida marinha, o gelo e todo o ecossistema que precisa de ser protegido e onde se passam algumas das mudanças mais rápidas do planeta", afirma.

Segundo os dados mais recentes do norte-americano National Snow and Ice Data Center, o gelo do Ártico no mês de fevereiro tem vindo a diminuir a um ritmo de 2,9 por cento em cada década.

"O desafio é criar estruturas de governação que sejam legalmente vinculativas e que inibam a corrida aos recursos ou a canais navegáveis que possam vir a ser abertos, como já aconteceu no acordo de pescas em alto mar para o Ártico, que demonstra como países como os Estados Unidos, a Rússia, a China ou estados europeus conseguem colaborar quando se trata de algo que é do interesse internacional", defende.

Kristina Gjerde salienta que, mesmo sem rotas permanentes a atravessar a região e o trânsito limitado aos portos locais, já há navios movidos a combustíveis pesados a circular, que "são emitidos para a atmosfera e para o gelo, acelerando o aquecimento".

"O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tem dito que estamos a fazer guerra ao nosso planeta e temos que pensar no impacto total da navegação, tanto agora como daqui a 20 anos", afirmou a advogada.

Os impactos totais num ecossistema tão sensível são ainda desconhecidos e todos os oito países com assento no Conselho do Ártico precisam de os avaliar e os cinco com zonas económicas exclusivas na região (Estados Unidos, Canadá, Rússia, Dinamarca, Noruega) precisam de monitorizar o impacto da exploração de recursos.

"Precisamos de descarbonizar o transporte marítimo. Garantir uma pegada ecológica silenciosa, porque são lugares que não estão habituados a ruído. Precisam de navegar lentamente e não podem exacerbar o problema das alterações climáticas globais. É preciso avaliar melhor os prós e os contras", defende Kristina Gjerde.

"Desta vez, há a oportunidade de agir bem. Os navios circulam muitas vezes por sítios onde não deviam. Há naufrágios, há derrames de combustível. Antes de pensar em abrir rotas, seria útil começar a desenhar navios adequados, hiper-seguros. Os antiquados porta-contentores não servem. Têm que ser movidos a energia solar, eólica, só devíamos deixar entrar no Ártico navios com desenho da era espacial. Não bastam navios 'verdes'. Têm que ser navios 'brancos'", considera.

O estado do Ártico e a investigação científica em torno da região estão no centro do congresso científico virtual Arctic Science Summit Week, que começou na sexta-feira passada com reuniões de trabalho, mas cuja parte científica, organizada por Portugal, decorre entre quarta e sexta-feira.

Leia Também: Maior encontro sobre Ártico organizado por Portugal começa hoje

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