Desde que a guerra começou, há uma "quase unanimidade de posições pró-Ucrânia e anti-Rússia" e a "desinformação que se propaga mais é a desinformação favorável à Ucrânia", mas "não quer dizer que tenha origem na Ucrânia", afirma o investigador e também jornalista.
Ou seja, muito mais "do que propagar uma informação qualquer que seja favorável ao lado russo", diz.
Isto porque existe um enorme movimento de apoio à Ucrânia e as pessoas pró-Ucrânia, sem qualquer intenção de manipulação, acabam por partilhar mais coisas a favor de Kyiv, sem verificar a sua veracidade.
"Temos uma situação estranha em que esta é a provavelmente a situação dos últimos anos em que a Rússia terá mais difícil em fazer passar a sua desinformação", salienta Miguel Crespo.
O investigador recorda que, por definição, a desinformação tem duas características "muito importantes", em que uma é que esta é feita "por cidadãos de forma mais ou menos orgânica e que se propaga facilmente, sem nenhum objetivo de estado de guerra ou de confronto institucional".
A outra "é a desinformação institucional, portanto, aquilo que antigamente se chamava contrainformação, que em todas as guerras terá sempre existido e que se profissionalizou muito durante a II Guerra Mundial", afirma.
Aliás, Miguel Crespo considera "particularmente interessante" que muitas pessoas agora estejam a recuperar os manuais de contrainformação da II Guerra Mundial e do pós-guerra, "nomeadamente, por exemplo, os manuais produzidos pela União Soviética e que muito serviram para a luta do PCP contra a ditadura no pós-II Guerra Mundial e que inclusive estão editados em português".
Na última meia dúzia de anos, aponta, há estudos e dados sobre desinformação principalmente com origem na Rússia, mas não só.
"Houve muitas tentativas de desinformação que pusessem em causa as democracias ocidentais, vimos isso aquando das eleições nos Estados Unidos da América, em 2016, e que levaram à eleição de Donald Trump e onde houve muita informação com origem na Rússia", mas não só.
A desinformação da Rússia tinha os objetivos políticos de prejudicar a candidata democrata na altura, Hillary Clinton, e beneficiar Donald Trump, "que seria, tal como foi, um presidente mais simpático para o regime russo" do que a oponente poderia ter sido, considera.
"Vimos o mesmo acontecer com o referendo na Grã-Bretanha, que levou ao Brexit, e vimos também em menor escala, por exemplo, em eleições alemãs, em eleições francesas e, portanto, há uma máquina de desinformação institucional com origem na Rússia com objetivos políticos e que são basicamente sempre os mesmos", aponta o investigador.
Os objetivos são pôr em causa a estabilidade dos regimes democráticos, "não diria manipular as eleições, acho que isso é abusivo, mas pelo menos pôr em causa o normal funcionamento das instituições", afirma.
Miguel Crespo acrescenta que houve e sempre haverá "muita desinformação institucional" cujo objetivo é puramente económico.
A desinformação funciona ou principalmente funciona "se se apoiar nas crenças de quem recebe a desinformação".
No meio desta guerra em que as redes sociais assumem um papel relevante, Miguel Crespo considera preocupante a interdição dos canais russos Sputinik e RT, que eram "basicamente irrelevantes" do ponto de vista português em termos de audiência ou de conhecimento da sua existência.
"Basicamente ninguém sabia sequer que eles existiam ou que estavam disponíveis nas nossas redes de televisão que temos em casa, quando as autoridades europeias tomam a decisão -- portuguesas e europeias -- e os operadores no caso português tiram os canais de televisão, aquilo que nós estamos a fazer é exatamente o contrário, ou seja, tínhamos algo que era irrelevante e que ninguém sabia que existia e de repente proíbe-se", sublinha.
E, com a proibição, todos ficam a saber que aqueles canais existem e ficam com curiosidade de ver.
"Obviamente são canais oficiais de informação do Estado russo, mas não são, não podemos dizer que são canais de desinformação. Também está lá a desinformação, mas não são canais de desinformação", reforça Miguel Crespo.
No início da pandemia, um dos investigadores do MediaLab ISCTE fez um estudo sobre desinformação russa e analisou os conteúdos da RT e Sputnik, tendo concluído que basicamente ninguém via, não tinha alcance e também não tinham grande desinformação, conta.
"O grande problema" com a proibição destes dois canais "é exatamente o facto de as autoridades europeias terem tomado uma posição" igual à que "desde sempre criticam em relação à Rússia e a outros Estados mais ou menos ditatoriais, que é a censura à informação livre, plural", critica.
Portanto, "a meu ver, abre um precedente extremamente grave em termos europeus", já que se trata de "uma decisão política discriminatória quanto a um tipo de conteúdo e que nos pode levar por exemplo a questionar: 'Ok, eles são desinformação, mas se nós não podemos comparar a informação com a desinformação, como é que nós sabemos que a nossa informação está correta?'", argumenta.
Miguel Crespo espera que quando o conflito terminar esta questão seja alvo de um "debate alargado nos vários países europeus e no próprio Parlamento Europeu".
Porque isto "não se pode verificar em situação nenhuma, porque é completamente discriminatório, ou seja, a partir do momento em que podemos discriminar um caso, podemos discriminar qualquer outro", acrescenta.
Quanto à desinformação, esta vai continuar, mesmo depois deo conflito terminar.
"Esta lógica de desinformação, nomeadamente naquilo que é a oposição política e económica: neste caso da Rússia com a União Europeia do ponto de vista económico, e com a NATO, do ponto de vista militar, é algo que não vai terminar com esta guerra, independentemente de qual seja o desfecho, ou seja, existirá sempre", enfatiza.
"E convém não esquecer que há sempre desinformação de todos os lados envolvidos", reforça Miguel Crespo, rematando que a ideia "'vamos acabar com a desinformação' é tão utópica como imaginar que as pessoas vão deixar de gostar de boas histórias".
Leia Também: Investigador defende "amplo debate" após proibição de canais russos