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Como Anna passou dois meses escondida em Azovstal com um bebé

Anna, o marido, o filho e os pais esconderam-se na fábrica siderúrgica de Azovstal nos primeiros dias da invasão russa da Ucrânia. Chegou a Zaporizhzhia cerca de dois meses depois, mas o marido está entre os 2.500 militares ucranianos capturados pelos russos.

Como Anna passou dois meses escondida em Azovstal com um bebé

Antes da invasão russa da Ucrânia, Anna Zaitseva era professora de francês numa escola na cidade portuária de Mariupol. Estava casada há cerca de um ano com Kirill, um ex-fuzileiro, com quem teve um filho. Foi o nascimento da criança que fez com que o marido deixasse o exército ucraniano porque “a profissão militar não era propícia à vida familiar”. Trabalhou na fábrica siderúrgica de Azovstal durante três meses e a 24 de fevereiro começou a guerra.

Anna explicou, ao site ucraniano The Village, que a sua família morava na margem esquerda de Mariupol e, “desde o primeiro dia", ouviram "que uma ofensiva estava a vir de lá". Kirill disse-lhe que as famílias dos funcionários da fábrica poderiam ali abrigar-se dos bombardeamentos russos.

“Levei documentos, um cobertor, comida para uns dias, fraldas e algum leite de fórmula para o bebé, porque sentia que o leite materno estava a desaparecer com o stress. Dizer que isso não foi suficiente é não dizer nada. Junto com os meus pais e filho, fui para Azovstal”, contou.

O primeiro abrigo antibombas em que esteve não estava preparado para uma estadia a longo prazo, mas sim por “algumas horas”. “Não havia lugares para dormir, apenas bancos para sentar. Havia bolos para nós, mas não foram suficientes. Quando lá entramos, já lá estavam cerca de 10 pessoas. Passamos uma semana em bancos e quase sem comida”, explicou.

A rotina dessa semana incluiu um passeio de “cinco minutos por dia” até à porta de entrada do estabelecimento, “para ficar de pé e respirar”. O resto do tempo era passado no abrigo porque “era muito perigoso sair”. 

Quatro dias após o início da invasão, a 28 de fevereiro, Kirill decidiu juntar-se ao Regimento Azov, que já estava na fábrica, com o objetivo de ficar próximo da família. No entanto, Anna viu o marido “apenas duas vezes” durante todo o tempo que esteve em Azovstal. “Estava quase sempre em missão por toda a cidade e chegou a Azovstal apenas quando ficou gravemente ferido”, contou.

Nos primeiros dias de março, a “questão da alimentação” começou a piorar. Havia poucos alimentos e cada vez “mais e mais” pessoas. Anna e o filho foram então transferidos para outro abrigo no complexo siderúrgico, onde estiveram durante 58 dias. Além deles, havia outros 75 civis ali escondidos, 17 dos quais crianças.

O filho de Anna era a criança mais nova, tinha apenas três meses e meio quando começou a guerra. “Teve sorte”, considerou a mãe. Sorte por não precisar de comida, porque as outras crianças de três a cinco anos “estavam constantemente com fome”. Já os adultos comiam “sopa aguada com massa”. “Não ficavam muito cheios, mas não passavam fome”, disse.

Os bombardeamentos não paravam e destruíram um dos geradores que fornecia energia àquele abrigo. Para aquecer água para o leite em fórmula do bebé, Anna passava meia hora sentada com uma vela sob um copo de metal na mão.

Em Azovstal, existia água e combustível, mas chegar até eles “era muito perigoso”. “Tínhamos de ir sob fogo a vários prédios da fábrica e procurar”, lembrou. Os civis “usavam uniformes da fábrica” por serem “muito quentes e densos” e protegerem “contra detritos”. As roupas normais “jaziam escondidas em memória da casa” e foram usadas pela primeira vez durante a evacuação da fábrica.

A primeira tentativa de evacuação ocorreu a 15 de março, mas os bombardeamentos começaram quando os “comboios humanitários” tentavam sair de Mariupol e a “maioria foi forçada a regressar a Azovstal”.

Mais de um mês depois, a 25 de abril, Anna e o filho faziam parte da lista de pessoas que abandonariam a siderúrgica. Com eles, iam dois prisioneiros de guerra russos. Durante a tentativa de retirada de civis, houve um ataque e todos os civis tiveram de voltar a esconder-se nos abrigos. “Um drone inimigo passou a sobrevoar o prédio onde o nosso abrigo estava localizado 24 horas por dia”, explicou.

Anna conseguiu sair de Azovstal a 30 de abril - a imagem da sua chegada a Zaporizhzhia com o filho bebé nos braços correu o mundo - e foi recebida por representantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Cruz Vermelha. Antes, passou pelo ‘campo de filtragem’ das tropas russas, num procedimento que durou cerca de quatro horas.

“O campo de filtragem assemelha-se a um campo militar comum. Há muitas pessoas de uniforme, armas e tendas brancas. Estávamos divididos: homens e mulheres separados. Fomos levados para a primeira tenda, onde tivemos de nos despir completamente. Na tenda, soldados russos sentiram cada uma de nós, cada centímetro de nosso corpo, incluindo as nossas zonas íntimas. Eles fizeram isso sem trocar de luvas”, contou.

Na segunda tenda, os documentos dos civis eram digitalizados e analisados. “Ficou imediatamente claro pelo meu sobrenome que eu era mulher de um militar. Eles tinham mais informações sobre o meu marido do que eu”, recordou.

O próximo passo era aceder aos telemóveis dos cidadãos ucranianos e retirar toda a informação possível: contactos, fotografias, acesso às redes sociais. 

Por último, “todos eram interrogados”. Neste processo, os soldados russos recolhiam as impressões digitais dos civis e obrigavam-nos a desenhar um mapa da fábrica e a mostrar onde estavam escondidos os militares.

Anna foi interrogada por um funcionário do Serviço Federal de Segurança da Federação Russa (FSB), mas, “quando ficou claro que não contaria nada”, foi “ameaçada” por outros dois homens, desta vez militares. Queriam saber se o marido, Kirill, era fascista e que tatuagens tinha no corpo.

Neste momento, a professora de francês foi “salva” por um representante da Cruz Vermelha de França e agora espera que “os soldados em cativeiro” possam também receber proteção da Cruz Vermelha ou da ONU.

“Espero realmente que voltem para casa. Durante a minha última conversa com o meu marido, um dia antes de serem detidos, prometi-lhe que quando voltasse teríamos uma filha”, contou ao site ucraniano.

Sublinhe-se que cerca de 2.500 combatentes ucranianos que estavam na fábrica de Azovstal - o local que foi o último reduto da resistência ucraniana em Mariupol - foram feitos prisioneiros pelos russos. 

Leia Também: AO MINUTO: Soldados russos condenados; Sanções da UE "não chegam"

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