Brasileiros excluídos questionam a festa do bicentenário

Brasileiros excluídos das comemorações do bicentenário da independência, organizadas na quarta-feira na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, questionam a festa, que consideram não ter refletido a realidade e interesses do país, cuja história permanece em disputa.

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Lusa
10/09/2022 09:44 ‧ 10/09/2022 por Lusa

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A dez quilómetros da praia de Copacabana onde ocorreu uma iniciativa que reuniu milhares de pessoas e misturou apresentações militares com um comício eleitoral do Presidente, Jair Bolsonaro, o guia turístico Rafael Moraes considerou que o tom político adotado no evento oficial financiado com dinheiro público resultou num apagamento dos problemas que realmente afetam os brasileiros.

"É muito triste olhar um grupo tomando conta de uma festa de Estado, de uma festa nacional. Grupos de direita tomaram conta e não falaram sobre aqueles que mais precisam desta festa para entender a importância da independência porque nunca se sentiram independentes. O homem preto e a mulher preta nunca se viram independentes neste país", disse, referindo-se à população afrodescendente vítima das maiores taxas de pobreza e violência desde foram capturados em África e escravizados no Brasil.

"Foi como se o Rio de Janeiro nascesse do nada, mas ele nasceu nesta região aqui da Pequena África. Quem construiu o que é Copacabana hoje, o que é o Rio de Janeiro hoje, foram os escravizados que chegaram aqui. Por que não se falou sobre isto?", questionou Moraes, mencionando o discurso de Bolsonaro sobre as suas ações de Governo e contra uma alegada ameaça comunista personificada pelo ex-presidente Lula da Silva que ele e seus seguidores afirmaram que irão derrotar nas presidenciais, em outubro.

Filho de portugueses, Moraes trabalha no Instituto de Pesquisa e Memória dos Pretos Novos, localizado numa zona central da cidade chamada atualmente de Pequena África e onde também está o cais do Valongo, património mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO) desde 2017.

O instituto funciona numa área onde foram despejados e queimados corpos de milhares de africanos cativos, entre 1772 e 1830, embarcados pelos portugueses em África, que chegaram com vida à antiga capital do Brasil, mas morreram doentes antes de serem escravizados.

Redescoberto em 1996 durante obras de reconstrução, o cemitério expõe parte dos restos mortais destes personagens invisíveis simbolizam a violência perpetrada por portugueses e brasileiros que criou alicerces do racismo estrutural ainda existente.

Cenários da revitalização em andamento em parte do centro carioca, o cemitério dos Pretos Novos, o cais do Valongo e outros sítios da Pequena África compõe um quadro em transformação onde o abandono começa a ser revertido por pequenos empreendimentos culturais.

Um centro de informações não inaugurado que já deveria funcionar por exigência da Unesco no cais do Valongo sintetiza a diferença entre o aparente apagamento histórico do poder público face ao surgimento de espaços culturais que tem sido inaugurados na área depois da pandemia dentro de construções históricas da Pequena África, que também abriga a icónica Pedra do Sal, berço do samba.

A assistente social Sandra Rabello, 64 anos, moradora do Rio de Janeiro, estava entre as pessoas que disseram à reportagem que não puderam comemorar o bicentenário.

"Estava em Copacabana e me senti violentada, violada em meus direitos porque esperava que o Presidente não impulsionasse esta campanha eleitoral que ele impulsionou. Sabia que os apoiadores dele estariam lá, mas não esperava que fosse um ato totalmente político", disse Sandra Rabello.

"Era uma data em que poderíamos ter repensado e discutido a independência e não fizemos isto por escolha do líder da nação", completou.

Separada por menos de 14 quilómetros da praia de Copacabana, a aldeia urbana do Maracanã, localizada ao lado do estádio de futebol mais famoso do país, abriga duas dezenas de indígenas críticos e ausentes da festa promovida pelo Governo Bolsonaro e apoiantes em Copacabana.

Urutau Guajajara, líder do grupo, disse à Lusa que os povos originários do Brasil são alvo de um processo de degradação e genocídio que data de 1500 e, portanto, estes eventos da independência de Portugal, liderada por D. Pedro em 1822, um rei estrangeiro que morreu na Europa, lhe soaram como brincadeiras de mau gosto.

"O Governo trouxe um coração que não significa nada para a gente (...) Uma grande gozação com o povo brasileiro", criticou, mencionando o empréstimo do coração do antigo monarca, preservado há mais de 180 anos na Igreja da Lapa, no Porto, que viajou para o Brasil para os festejos do bicentenário.

"Nós, indígenas, não temos independência, não estamos independentes. Somos sem terra, não temos terras, nossas terras são do Governo. As terras indígenas não são nossas. Quando muito, apenas usufruímos e preservamos as áreas demarcadas", acrescentou Guajajara, que considerou que a alegada liberdade resultado da independência não foi dada aos povos originários, assim como foi sonegada aos negros escravizados, libertos de facto em 1888.

A aldeia urbana do Maracanã existe no terreno que abriga as ruínas de um casarão construído em 1862 pelo duque de Saxe, marido da princesa Leopoldina, filha de D. Pedro II, doado ao Serviço de Proteção aos Índios em 1910.

Lá funcionou o Museu do Índio, transferido para o bairro de Botafogo em 1978 e que atualmente está fechado ao público.

Desde 2006 a área é ocupada por indígenas que impediram a destruição do casarão e lideraram protestos contra a sua demolição, em 2013, antes do Campeonato do Mundo no Brasil.

Representantes do Estado brasileiro querem retomar o terreno judicialmente opondo-se aos indígenas do Maracanã, que sonham fundar lá uma universidade e uma aldeia dentro da cidade que abriga a praia de Copacabana, o Cristo Redentor e outros símbolos do Brasil, sem nenhum território demarcado para os povos originários de lá expulsos há cinco séculos.

Leia Também: Lula da Silva diz que "Presidente de Portugal merecia mais respeito"

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