"Há uma banalização quando se compara tudo com o Holocausto"
Irene Flunser Pimentel, historiadora, investigadora e escritora, é a convidada desta sexta-feira do Vozes ao Minuto.
© Gerardo Santos / Global Imagens
Mundo Holocausto
A propósito do Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto, que se assinala esta sexta-feira, dia 27 de janeiro, a galardoada historiadora Irene Flunser Pimentel, que recebeu o 'Prémio Pessoa' em 2007, fala sobre "um dos períodos mais negros da História", com mais de seis milhões de judeus assassinados durante a Segunda Guerra Mundial, comentando a "banalização" que tem sido feita ao acontecimento e os fenómenos populistas associados ao crime nazi.
Irene Pimentel é doutorada em História Contemporânea e autora de várias obras sobre o período da Segunda Grande Guerra e sobre o genocídio de judeus, nomeadamente a obra 'Holocausto', que foi publicada em setembro de 2020, em plena pandemia de Covid-19, e lhe valeu o 'Prémio Fundação Calouste Gulbenkian'.
Em entrevista ao Notícias ao Minuto, explica ainda qual o papel de Portugal naquele que foi considerado o maior genocídio do século XX.Há uma banalização quando se compara tudo com o Holocausto, qualquer crimeO Holocausto é um dos temas mais falados da historiografia contemporânea, mas também sobre o qual há muitas ideias feitas, falsificações e dúvidas… Há, de facto, uma ideia errada do que se passou?
Holocausto ou Shoá [termo hebraico que termo hebraico que significa “catástrofe” e define o extermínio de judeus], mas Holocausto é como é mais conhecido em Portugal e nos países anglo-saxónicos. O regime nazi desencadeou a Segunda Guerra Mundial e provocou milhões de vítimas, entre os países ocupados, incluindo prisioneiros de guerra soviéticos e ciganos. Mas o termo representa o genocídio dos judeus e, a partir de 1942, também de ciganos.
Considera que se tornou um tema banalizado?
Há enormes confusões e é justamente por isso que o termo acaba por ser bastante banalizado. Por boas razões e por más razões. As boas razões é que o tema é muito falado, e bem, muito estudado em termos da historiografia, dos testemunhos, da memória, da literatura, da poesia, do cinema e da própria música. Aí, há uma boa banalização. Mas há uma má banalização quando se compara tudo com o Holocausto, qualquer crime. Ora, o Holocausto é o genocídio dos judeus e a ideia inicial do nazismo e do regime hitleriano, que era eliminar do mundo, matando, exterminando todos os judeus europeus. E, depois, se tivesse ganho a guerra, o objetivo seria também destruir os judeus do resto do mundo.
Também se confundem os conceitos de campo de concentração com campo/centro de extermínio. Quais são as diferenças?
Os campos de concentração, onde quase 50% das pessoas que lá iam parar acabavam por morrer, não eram destinados a matar unicamente, aliás, segundo os próprios nazis, eram centros de "regeneração" e "reeducação". Ou seja, na prática, eram enviados para lá todos os adversários políticos, a começar pelos comunistas e pelos socialistas, mas também Testemunhas de Jeová - porque não faziam a guerra e eram objetores de consciência -, homossexuais e tantas outras vítimas. Muitos morriam devido às más condições de vida, fome e trabalho forçado, muitos eram fuzilados. A chamada 'regeneração nazi' queria dizer, por exemplo, que um comunista alemão, se deixasse de ser comunista, podia até sair do campo de concentração. Se uma Testemunha de Jeová deixasse de o ser era considerado “regenerado” e podia ser libertado.
Por outro lado, os centros de extermínio eram unicamente destinados a matar e provocaram 98 ou 99% das vítimas. As pessoas chegavam lá para serem mortas. Ponto.
No caso de Auschwitz, por exemplo, que é um dos campos de concentração mais conhecidos, era um complexo de vários campos: campo de concentração (Auschwitz I), Campo de trabalho forçado para judeus (Buna-Monowitz) e campo de extermínio de judeus e ciganos (Birkenau). As pessoas que iam lá parar, naqueles comboios que entravam pelo campo de Birkenau, eram selecionadas, mal saíam dos comboios. Cerca de 10% - os mais novos, homens, ainda saudáveis -, eram transferidos para os campos de trabalho escravo, onde morriam ao fim de dois ou três meses devido às condições e ao trabalho forçado. Os outros, portanto, os cerca de 90% - mulheres, idosos, doentes, crianças, bebés - iam diretamente para as câmaras de gás.
Sobretudo com o nazismo, no século XX, foi inventado que os judeus pertenciam a uma raça à parte, que não deveria estar no mundo, porque era perigosa para as chamadas raças perfeitas e puríssimasComo se explica tamanho crime de ódio? Com que base aconteceu o genocídio de judeus?
É difícil de definir em poucas palavras, mas o antissemitismo sempre existiu ao longo da história europeia. Os judeus normalmente só podiam praticar determinadas profissões, estavam alojados em chamados guetos, de onde não podiam sair sem autorização, não se misturavam com os chamados gentios, e eram perseguidos, de várias formas. Há um antissemitismo de caráter religioso cristão, que se prende com o facto de Jesus Cristo ter sido morto por judeus, ele próprio um judeu.
A grande novidade é que, a partir do final do século XIX, e sobretudo com o nazismo, no século XX, foi inventado que os judeus pertenciam a uma raça à parte, uma raça que não deveria existir, não deveria estar no mundo, porque era perigosa para as chamadas raças perfeitas e puríssimas, como o nazismo definia, por exemplo, a raça alemã, os arianos... O judeu alemão estaria a colocar as impurezas raciais no seio da raça pura alemã. Ser alemão não era considerado uma nacionalidade, porque havia alemães judeus e alemães de outras religiões. Ser alemão para os judeus era pertencer a uma raça superior. Isto advém tudo de uma leitura errada do Darwinismo (o darwinismo social) e da ideia “eugénica” (“aperfeiçoamento da raça”), segundo as quais a raça mais pura e superior é a que predomina e sobrevive. Na ideologia nazi, o mundo estava dividido em raças e a superior era a alemã.
'Se nós não exterminarmos os bebés e as crianças judeus também, qualquer dia eles crescem e destroem-nos a nós' e aos nossos filhos. Por isso, a Shoá caracteriza-se pelo assassinato de todos os judeus, desde a nascença, pelo simples facto de serem quem eram.
O processo do Holocausto ocorreu por etapas. Quando Hitler chegou ao poder, a partir de 1933, o regime colocou todos os judeus fora da função pública, das universidades e das escolas, onde estavam os outros alemães, e proibiu determinadas profissões, que consideravam que eram hegemonizadas pelos judeus por judeus, como médicos, advogados, artistas, escritores, intelectuais, enfim, as profissões liberais.
Depois, há outra fase, em 1935, em que os próprios nazis precisaram de criar uma legislação para definir o que era um judeu, então inventaram leis e determinaram que o judeu era todo aquele que tinha pais e avós, dos dois lados, judeus. E havia toda uma hierarquia, os meios judeus, um quarto judeus e por aí fora.
E há um momento em que a política nazi muda. Deixam de ser (só) afastados do espaço público e começam a ser eliminados. Falamos de cerca de seis milhões de judeus mortos…
Antes disso, a partir de 1938, já não é retirá-los fora do espaço público e de certas profissões, mas é expulsá-los do território nacional alemão. E, à medida que a Alemanha foi ocupando outros países, a política foi-se estendendo a esses territórios. Em 1941, na sequência da invasão da União Soviética pelas tropas nazis, os Einsatzgruppen - grupos móveis que acompanhavam as tropas alemãs e capturavam, nas aldeias, todos os judeus, bem como comissários políticos soviéticos capturados -, começam a assassiná-los por fuzilamento, a céu aberto. Primeiro são assassinados homens e depois, bebés, crianças, mulheres e idosos.
Na “Solução final” [é a partir da segunda metade de 1941, o genocídio dos judeus. Não sendo um plano só de Himmler e Heydrich, estes elementos da SS são responsabilizados por levar a cabo o genocídio], arranjou-se uma forma "mais humana" de os assassinos matarem [é uma expressão de Heinrich Himmler, querendo dizer que seria mais “humana” para quem matava, pois em vez de os assassinos se confrontarem com os bebés que matavam, o assassinato passou a ser levado a cabo de forma “industrial” nas câmaras de gás]. Muitos deles matavam crianças, bebés e mulheres e só conseguiam fazê-lo à custa de álcool. Então, é inventado o gás, colocado num orifício numa câmara de gás, por alguém que depois já não vê o que se passa lá dentro. E aí, Adolf Hitler começa o processo de 'assassinato industrial', uma limpeza que corresponde à morte, pura e simplesmente. Matavam tudo o que era judeu, pelo simples facto de serem o que eram…
E qual o papel dos países neutrais, como era o caso de Portugal?
Portugal estava em ditadura e tinha um bom relacionamento com a Itália fascista e com a Alemanha nazi. Mas, ao mesmo tempo, Portugal foi neutral durante a II Guerra Mundial. Parecia que essa neutralidade era geométrica face aos dois lados beligerantes, embora até 1943, a neutralidade portuguesa tenha sido mais a favor da Alemanha nazi. Quando se começou a perceber que esta iria perder a guerra, Salazar passa a ter uma política mais benéfica para os Aliados ocidentais, até porque Portugal tinha uma velha aliança com a Grã-Bretanha. Digamos que um refugiado judeu era mais bem visto do que um refugiado político no tempo da guerra em Portugal. Porquê? Porque o inimigo principal do Salazarismo era o comunismo e não o judaísmo. Mas, segundo a lógica alemã, em que queriam criar uma Europa nazi, se ganhassem a guerra, também iam convencer os países neutrais a terem uma 'política justa', que era o extermínio dos seus judeus.
É importante referir o papel muito importante de Aristides Sousa Mendes, que desobedeceu às ordens de Salazar, para que não se desse vistos a refugiados, porque Portugal nunca foi país de destino de refugiados, foi país de trânsito. O Sousa Mendes não ligou a essa lei de limitação de vistos e deu-os a todos os que lhe pediram.
O genocídio de uma categoria de seres humanos era algo que não era conhecido, tinha poucos precedentes [o termo “genocídio” é aliás criado por Lemkin, um judeu polaco, em 1942 ou 1943 e será depois adoptado pela ONU, no pós-guerra] A vivermos ainda em ditatura, sob os comandos de Salazar, como é que se recebe a notícia sobre o genocídio nazi do povo judeu?
Uma coisa é saber, outra coisa é compreender o que é que se está a passar. O genocídio de uma categoria de seres humanos era algo que não era conhecido, tinha poucos precedentes [o termo “genocídio” é aliás criado por Lemkin, um judeu polaco, em 1942 ou 1943 e será depois adoptado pela ONU, no pós-guerra]. Demorou-se algum tempo a perceber o que se estava a passar. Há uma célebre entrevista de Churchill, à BBC, em 1942, em que ele revela que está a acontecer algo de tão monstruoso que nós nunca conhecemos anteriormente.
Já com registo de milhões de vítimas, no final de 1942, os aliados fizeram uma declaração que chegou a todo o lado e também ao governo português. Cá, evidentemente a sociedade portuguesa soube mais tarde do que em outros países democráticos, porque a ditadura continuou, bem como a Censura. Mas, a partir de 1946, passavam regularmente reportagens sobre o julgamento de Nuremberga, onde foram julgados os principais assassinos e governantes nazis.
Mas saber ao certo como tudo se passou, só anos depois do final da guerra, porque inicialmente o genocídio dos judeus nos centros de extermínio foi considerado como fazendo parte da guerra e os judeus foram considerados vítimas de guerra, no seio de muitas outras vítimas. O facto de os judeus terem sido escolhidos para não poderem continuar a viver, não foi logo entendido, só com a historiografia.
Como e quando os campos de concentração foram descobertos? Esses locais, onde morreram milhões de pessoas, tinham "provas" visíveis do que tinha ocorrido?
As tropas soviéticas* chegaram lá [campo de concentração de Auschwitz] precisamente a 27 de janeiro de 1945, por isso é que se escolheu esta data para assinalar o Dia de Memória às Vítimas do Holocausto. Descobriram sobreviventes e também os cadáveres que se amontoaram e que os nazis não tiveram tempo de esconder ou de queimar para omitir o crime que tinham cometido.
[*Nota de edição: Erradamente, numa primeira versão da entrevista, em vez de tropas soviéticas, podia ler-se tropas americanas, canadianas e britânicas, imprecisão da inteira responsabilidade editorial do Notícias ao Minuto. Em virtude desse facto, que lamentamos, apresentamos as nossas desculpas à entrevistada e aos leitores]
Antes do julgamento de Nuremberga foi criado um Tribunal Internacional - que foi um marco histórico -, para julgar os principais autores do crime, pelo menos os que não conseguiram escapar, porque alguns fugiram e outros reconverteram-se na própria Alemanha, dizendo que só tinham obedecido a ordens.
Como diz Ian Kershaw, o Holocausto foi construído pelo nazismo, mas a estrada foi pavimentada pela indiferença
Há diversas histórias sobre o Holocausto, como a de Anne Frank. Estes relatos ajudam a perceber o que realmente aconteceu ou ficcionam o acontecimento?
A Anne Frank é um testemunho, e todos os testemunhos são muito, muito importantes. É uma jovem rapariga, de pouca idade, que acaba por ser morta no Holocausto porque é judia.
O grande historiador Ian Kershaw, que escreveu a biografia do Hitler, afirmou que o caminho para o Holocausto foi construído pelo nazismo, mas a estrada foi pavimentada pela indiferença. As pessoas viam os comboios com os deportados, que iam da Alemanha ou de França até a Auschwitz, com pessoas à janela, pessoas que gritavam, que gemiam, que pediam água… Eles eram vistos. Os alemães que viveram durante o regime nazi perceberam que algumas casas onde vivia antes um judeu e a sua família, simplesmente deixou de estar. Houve uma cumplicidade e indiferença do povo.
Essa indiferença revela que o próprio movimento nazista tinha seguidores entre os alemães? Tiraram algum benefício deste acontecimento?
Houve muitos alemães que beneficiaram com a política alemã, desde que não fossem adversários políticos, judeus, eslavos ou ciganos, foram cúmplices e continuaram a viver as suas vidinhas. Muitos dos brinquedos e das roupas que eram retirados aos judeus antes de serem mortos nas câmaras de gás foram transportados para a Alemanha e eram dados a crianças alemãs. Isto tudo só terminou porque os nazis perderam a guerra…
"Se aconteceu, pode voltar a acontecer", disse Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz… Concorda?
Absolutamente, porque os seres humanos não são muito diferentes. O egoísmo, a falta de empatia, a discriminação, o racismo, tudo isso continua…
O genocídio começa, não por matar fisicamente as pessoas, mas por eliminar uma cultura, uma etnia, uma nacionalidade
Os ideais e discursos de ódio acabam por atrair (cada vez mais) as pessoas?
Tanto, que estamos a viver um período muito complicado a nível mundial, inclusive estamos a viver uma guerra na Europa, que não sabemos até onde vai. Aconteceu igual com os nazis, embora eles tivessem algum aplauso interno, primeiro invadiram a Áustria, depois a Checoslováquia e a Polónia… Parece que é tudo longínquo, mas agora que estamos a viver a invasão das tropas russas de Putin na Ucrânia, percebemos melhor o que aconteceu no passado e que o mesmo se pode repetir. Cabe-nos impedi-lo.
O genocídio muitas vezes começa não por matar fisicamente as pessoas, mas por eliminar uma cultura, uma etnia, uma nacionalidade. Espero que agora não cheguemos ao que aconteceu na Segunda Guerra Mundial e no Holocausto. Não quer dizer que as mesmas causas provoquem o mesmo efeito, o Holocausto podia não ter acontecido, mas aconteceu.
Até porque, há cerca de um ano, uma turista foi detida por fazer uma saudação nazi em Auschwitz.
A xenofobia, o racismo, a discriminação e a perseguição são várias fases até chegar ao que aconteceu na Alemanha nazi.
A libertação de Auschwitz já ocorreu há 78 anos. No âmbito deste dia, de que forma deve ser preservada a memória das vítimas deste massacre?
É [preciso] continuar a fazer a História, a preservar os depoimentos. O próprio Spielberg teve a iniciativa de gravar uma série de testemunhos orais, o museu do Holocausto de Washington também tem uma coleção enorme de testemunhos. Tem de se continuar a utilizar o mês de janeiro, o 27 de janeiro, fazer filmes, documentários…
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