Somália é refém da falta de interesse para que seja um país "forte"
A Somália continua refém da falta de interesse dos seus vizinhos poderosos -- Quénia e Etiópia -- em que se torne um país "forte" e "não há organizações regionais para lidar com estas questões", considerou hoje a investigadora Ana Carina Franco.
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Mundo Somália
"Os Estados vizinhos [Quénia e Etiópia] não têm interesse numa Somália forte. É a grande questão, e vai permanecer", porque as iniciativas conducentes à estabilização e organização do Estado do Corno de África "têm que ser dos Estados e regionais" -- que não têm esse interesse, afirmou a investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) da Universidade Nova.
A investigadora, numa intervenção 'online' na Lisbon Speed Talk, promovida pelo Clube de Lisboa, acrescentou que a organização regional com essa vocação, a IGAD - Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento "está bloqueada há alguns anos".
"A questão é que não temos também organizações regionais para lidar com estas questões. A própria Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento, que acaba por ser um parceiro fundamental da União Europeia [UE] - que gosta muito de trabalhar com as organizações regionais - é sujeita a querelas políticas entre os vários países da região", lamentou Ana Carina Franco.
A organização regional africana, segundo a investigadora, tem assumido "um papel muito fraco na gestão destas questões", onde os esforços diplomáticos e a intervenção de "uma organização de alto nível como a IGAD" poderiam fazer a diferença.
Para isso, no entanto, será necessário "talvez reformular primeiro a organização, porque [a IGAD] não está propriamente no bom caminho e está até bastante bloqueada há alguns anos", apontou.
A investigadora reconheceu que a Somália perdeu alguma da notoriedade internacional que assumiu nos anos 2000 no âmbito da guerra dos Estados Unidos da América contra o Al-Shebab e outros movimentos extremistas islâmicos, como a Al-Qaida e o Estado Islâmico, sobretudo pelo protagonismo assumido na questão da pirataria e da ameaça aos interesses económicos e políticos das potências ocidentais na região do Golfo Pérsico.
O país foi palco de intervenções militares navais, incluindo da UE e da NATO, e durante muito tempo a Somália parecia estar no topo das prioridades e da atenção mundial. "Entretanto parece que perdeu um pouco essa relevância, ou pelo menos essa visibilidade, mas a verdade é que quem lá estava a apoiar os esforços de construção do Estado, na luta contra o terrorismo ou contra a criminalidade, continua a apoiar a Somália", afirmou.
"A dinâmica não se alterou assim tanto, apesar das longas décadas de apoio internacional", acrescentou.
Não obstante essa presença e apoio, o país continua afundado em conflitos, sobretudo os que opõem o Governo federal do Presidente, Hassan Sheikh Mohamud, e as milícias associadas às forças de Mogadíscio às forças do Al-Shebab, apoiadas ou sustentadas por vários clãs importantes, sobretudo no sul do país.
Para Ana Carina Franco, a grande questão da Somália continua a ser a da afirmação do Estado, não obstante o processo longo de formação de uma república de estados federados concluído em 2016.
"É muito recente, houve muito esforço, também com o patrocínio internacional para se chegar a uma república federal, tal como a conhecemos", mas depois, "o investimento [internacional] acaba por ser feito sobretudo na região de Mogadíscio em detrimento de outros espaços", notou.
"As dinâmicas que existiam antes do governo federal continuam a existir: os alinhamentos com os clãs, a linha de divisão muito ténue entre a esfera estatal e não-estatal", ilustrou a investigadora.
Esta dinâmica escapa aos esforços internacionais e mesmo as iniciativas de Mogadíscio para estabilizar ou normalizar áreas reconquistadas ao Al-Shebab acabam por fracassar "porque as comunidades têm a sua forma de organização e qualquer força que venha do exterior e não seja por elas reconhecida enfrenta muita resistência".
A investidora admitiu que a constituição de uma federação de estados "pode ter sido uma formalização apenas" e "ver-se-á como evolui", até porque "o que se vê é que é necessário o apoio de milícias, de grupos não-estatais, no combate à Al-Shebab e o próprio governo federal [que os] patrocina, acaba por participar (...) numa mistura de diferentes forças que agem em conjunto", mas por vezes também "umas contra as outras" ou em "disparidade".
O principal movimento extremista islâmico a operar na Somália encontra neste contexto um ambiente favorável, desde logo porque "as populações querem estabilidade e proteção e muitas vezes elas vêm do Al-Shebab", frisou Ana Carina Franco.
Quanto às técnicas do Al-Shebab "para fazer isso já é outra questão, é muito predatório" e "a troco de proteção há dinheiro que se paga".
"O grande problema do Al-Shebab é que tem um negócio muito próspero e por isso não tem interesse em dialogar", lamentou.
Por outro lado, Sheil Mahmoud, que tomou posse no ano passado, fez do combate ao Al-Shebab a sua principal política, ordenando uma contraofensiva muito forte, apoiada por atores internacionais, alguns de forma bilateral e outros no quadro multilateral estabelecido.
"O que se vê, porém, é que, uma vez libertados os territórios, não há forma de os manter, porque as forças de segurança não têm essa capacidade" e não beneficiam do apoio das comunidades, sublinhou a investigadora.
"É muito difícil que consigamos obter soluções mais duradouras quando há esta dinâmica muito local, que é difícil de ultrapassar", concluiu Ana Carina Franco.
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