Um número crescente de países europeus, casos de França, Alemanha, Bélgica, Itália e Polónia, têm sido palco de bloqueios de estradas e manifestações de agricultores, num movimento de contestação ao qual a extrema-direita e partidos populistas estão a associar-se, procurando canalizar para si os votos de protesto de um setor com grande peso na Europa, incluindo demográfico e de potencial eleitorado -- a UE conta com nove milhões de agricultores.
"Há um aumento significativo do ativismo dos agricultores, a uma escala que não vimos antes. Não surgiu do nada, penso que tem estado em lume brando há já algum tempo", disse à Lusa o porta-voz do Friends of Europe, um grupo de reflexão ('think tank') sem fins lucrativos sedeado em Bruxelas especializado em políticas da União Europeia (UE).
Para Dharmendra Kanani, existe "uma combinação de fatores" que explicam este movimento de contestação, apontando como os mais significativos a invasão da Ucrânia pela Rússia em fevereiro de 2022, que levou a UE a suspender os direitos aduaneiros sobre todos os produtos importados da Ucrânia, permitindo o escoamento para o bloco comunitário de cereais muito mais baratos a partir daquele país, conhecido como «o celeiro da Europa», assim como a transição verde.
De acordo com este responsável do Friends of Europe, a classe política não logrou explicar aos agricultores que "haveria um preço a pagar" para a indispensável mudança 'verde' na produção agrícola - setor responsável por cerca de 20% das emissões de gases com efeito de estufa -, e "os agricultores foram incluídos no processo de transição verde de forma demasiado lenta e tardia", havendo "uma grande comunidade que ainda recorre a metodologias tradicionais e não acompanhou os avanços tecnológicos".
Esta comunidade, constituída sobretudo pelos agricultores mais pobres, diz, "sente-se agredida", forçada a "mudanças para as quais não se sentem preparada", e também discriminada, pois embora a Política Agrícola Comum (PAC) tenha dos maiores envelopes financeiros do orçamento comunitário (o deste ano consagra perto de 55 mil milhões de euros à PAC), os fundos não são distribuídos equitativamente, e consideram não ter os mesmos apoios que os grandes produtores e setor privado.
"Atendendo às ligações de comunidade e pessoas próximas, designadamente familiares, dos agricultores, podemos estar a olhar para cerca de 20 milhões de pessoas em termos de impacto e ruído que esta comunidade pode provocar", diz.
Também Eric Maurice, analista político do centro de estudos European Policy Centre (EPC), observou que "os problemas enfrentados pelos agricultores diferem de um país para outro", até porque "os modelos agrícolas não são os mesmos, a sua exposição à concorrência estrangeira é diferente, bem como a sua dependência dos fundos da PAC", mas concorda que "têm em comum a oposição às novas políticas ligadas à transição climática na Europa, especialmente os impostos sobre os combustíveis e as novas regras ambientais, que consideram uma ameaça à sua atividade".
"No contexto das eleições e da preparação da próxima agenda legislativa, isto terá consequências porque a pressão política será exercida sobre a UE para ter em conta os pontos de vista das pequenas empresas e dos agricultores", disse, assinalando que, nos últimos meses, já se viu "o centro-direita, tanto a nível nacional como da UE, ser mais crítico em relação ao Pacto Ecológico e às regras ambientais".
Dharmendra Kanani destacou que "esta rebelião dos agricultores ocorre na altura em que a Europa está mais frágil, enquanto ideia, desde o pós-II Guerra Mundial", designadamente como resultado da guerra na Ucrânia mas também à luz do conflito entre Israel e Hamas e o grande risco de escalada da guerra no Médio Oriente, depois da pandemia da covid-19, sendo todo este contexto de crises e descontentamento cavalgado pela extrema-direita.
"Está a formar-se uma infeliz marcha firme rumo à direita mais radical. O populismo é muito atrativo pela simplicidade da sua mensagem, pois 'descomplica' o mundo, tenta explicar em termos muito simples um mundo muito complexo, e apresenta soluções fáceis. Vai ao coração de pessoas que se sentem perdidas, desapoiadas e excluídas", apontou.
Aos agricultores -- prossegue o porta-voz do Friends of Europe -, os populistas dizem que "os esquerdistas querem controlar a sua vida", e exortam-nos a rejeitar a transição verde em nome do combate às alterações climáticas, fenómeno que negam, mesmo que "as comunidades agrícolas são das mais expostas e são das que mais sofrem já com os crescentes fenómenos meteorológicos extremos", .
Os dois analistas concordaram que, além da imigração, a agricultura pode ser a nova "arma de arremesso político" da extrema-direita e dos populistas.
"O Pacto Ecológico tornou-se, nos últimos meses, um novo ângulo de ataque da extrema-direita, jogando com o receio das pessoas relativamente ao custo da transição e às ameaças ao seu modo de vida, especialmente no que respeita aos seus automóveis e aos seus hábitos alimentares", diz Eric Maurice.
De acordo com o analista do EPC, "a extrema-direita é muito boa a aproveitar as preocupações e os receios das pessoas, e muito boa a atacar a UE em todas as questões", razão pela qual "estão a aproveitar esta nova oportunidade política, com os agricultores, sem propor nada de realista", já que nem sequer explicam "como iriam reformar a PAC ou adaptar o Pacto Ecológico, para o qual já foram efetuados investimentos maciços, o que torna difícil parar completamente a transição".
"Vamos testemunhar uma guinada muito significativa à direita, também impulsionada por uma das mais alargadas e substanciais campanhas de desinformação de sempre, num ano em que metade do mundo vai a votos. Na Europa, e não só, haverá muitos a manipularem as emoções das pessoas, e p Parlamento Europeu terá a maior bancada de extrema-direita de sempre", prognosticou.
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