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Madrid: 20 anos depois, vítimas de atentado dizem ser "de 2.ª categoria"

Os 193 mortos e quase 1.900 feridos em 11 de março de 2004 em Madrid, num dos maiores atentados na Europa, são hoje considerados os grandes esquecidos do ataque ou "vítimas de segunda categoria" do terrorismo em Espanha.

Madrid: 20 anos depois, vítimas de atentado dizem ser "de 2.ª categoria"
Notícias ao Minuto

08:34 - 09/03/24 por Lusa

Mundo Espanha

As expressões são de dois jornalistas - Iñaki Gabilondo e Lucia Mendez - que em 2004 viveram de perto, pessoal e profissionalmente, os atentados com explosivos em quatro comboios suburbanos de Madrid. São apenas duas das expressões que, no mesmo sentido, se ouvem por estes dias em Espanha em documentários, 'podcast' e entrevistas especiais dedicados aos "20 anos do 11-M".

O maior atentado terrorista da história de Espanha, um país que durante décadas sofreu o terrorismo de organizações internas separatistas, em especial o do grupo basco ETA, é também aquele de que atualmente menos se fala no debate público e político.

Ao contrário dos outros, este foi um atentado 'jihadista', cometido por uma célula radical islamita, como ficou provado por uma sentença de 2007, do Supremo Tribunal espanhol, que condenou 21 pessoas.

Apesar da contundência da sentença, que deixou "tudo esclarecido", como repetiu nos últimos dias em diversas entrevistas o juiz que presidiu ao julgamento, Javier Gómez Bermúdez, o 11-M dividiu Espanha e, segundo os analistas, abriu ou aprofundou uma crispação e polarização política que se mantém até hoje.

Os atentados ocorreram três dias antes de umas eleições nacionais que as sondagens diziam que o Partido Popular (PP, direita) ganharia de novo folgadamente. Eram também as primeiras depois da guerra no Iraque, justificada por armas de destruição maciça nunca encontradas, mas que o então primeiro-ministro José María Aznar tinha garantido existirem, enviando tropas para o conflito, apesar da contestação de milhões de pessoas nas ruas.

As eleições foram ganhas pelo Partido Socialista (PSOE), depois de 72 horas de vertigem, em que Aznar e o governo do PP insistiram em atribuir a autoria dos atentados à ETA, apesar dos desmentidos do grupo terrorista basco, da reivindicação pela Al-Qaida e das evidências que se iam sucedendo de que a origem do ataque era outro.

Aznar ligou no dia do atentado, pessoalmente, e várias vezes, aos diretores dos grandes jornais, televisões e rádios para insistir na autoria da ETA. E fê-lo mesmo quando a investigação policial já tinha descartado essa hipótese, como já foi reiteradamente contado publicamente por diversos protagonistas, incluindo polícias, antigos membros dos serviços secretos, diplomatas, jornalistas e procuradores do Ministério Público, nas entrevistas e documentários divulgados nos últimos dias em Espanha.

A pressão de Aznar chegou às Nações Unidas, cujo Conselho de Segurança aprovou, logo em 11 de março, uma condenação aos atentados da ETA em Madrid.

No dia seguinte ao dos atentados, sexta-feira, começou a ouvir-se o grito "Quem foi?" nas manifestações com milhões de pessoas que encheram as ruas de Madrid para condenar o ataque, e assim foi até ao domingo das eleições.

José María Aznar - que mantém presença assídua no espaço político e mediático em Espanha - e outros dirigentes e ex-dirigentes do PP continuam até hoje a lançar a dúvida sobre quem esteve por trás do atentado, apoiando-se em que nunca foram identificados os "autores intelectuais" e que a sua magnitude exigia um conhecimento detalhado e local do terreno.

Nos anos que se seguiram, também alguns meios de comunicação, além de membros do PP, alimentaram a ideia de uma "teoria da conspiração", com informações que acabaram por se revelar falsas que pretendiam desprestigiar a atuação e investigação policial e vincular os 'jihadistas' detidos e condenados a membros da ETA, ao PSOE ou a Marrocos.

"Nem uma daquelas teorias tem uma base sólida. Mentiu-se conscientemente. Algumas partes da teoria da conspiração podem ter sido, digamos, involuntárias. Mas houve mentiras descaradas que foram feitas de má-fé", disse o juiz Javier Gómez Bermúdez, em declarações ao jornal El Pais publicadas no domingo passado.

A crispação e polarização dos dias dos atentados arrastou-se para o julgamento, anos depois.

"Dizia-se que se a sentença fosse num sentido, os juízes apoiavam determinados partidos de esquerda e se fosse noutro apoiavam a direita. Absolutamente falso. Era um tribunal conservador [de direita]. Eu era e sou conservador. E os outros magistrados, que se saiba, também. A sentença é a que é", sublinhou Javier Gómez Bermúdez.

Revendo hoje a cronologia de declarações públicas nas televisões espanholas do dia 11 de março de 2004, conclui-se que quase no imediato o debate se centrou nas eleições e, pouco a pouco, na incógnita de quem seriam os autores.

As vítimas, que viviam em zonas suburbanas de Madrid e, pouco depois das 07:30 da manhã, iam trabalhar ou estudar, são "as grandes esquecidas daquela jornada", como disse Iñaki Gabilondo num documentário emitido há uns dias pela televisão La Sexta.

São ainda hoje uma espécie de "vítimas de segunda categoria" do terrorismo em Espanha, por ser um atentado "divisório" e "a sociedade não ter chorado toda junta", nas palavras de Lucia Méndez, num 'podcast' do El Mundo de sexta-feira.

"São vítimas de mentiras" (a das armas no Iraque e da autoria da ETA do 11-M) e "do pior boato da história recente", lançado e fomentado por um governo e que se mantém até hoje, disse à agência Lusa o professor Javier Sampedro, catedrático de opinião pública e comunicação política da Universidade Rei Juan Carlos (Madrid) e autor do livro "Vozes do 11-M: Vítimas da mentira", publicado recentemente em Espanha pela editora Planeta.

Para o investigador, os boatos e mentiras retiraram "notoriedade pública" às vítimas e "usurparam-lhes a identidade", por se terem visto instrumentos de uma guerra política em que, além de terem sido várias vezes "revitimizadas", se tentou negar "a identidade dos seus verdugos".

"Nega-se-lhes que se possa colocar uma placa que denuncie quem os matou ou mutilou", sublinhou.

A Comunidade de Madrid (governo regional, do PP) vai inaugurar no domingo um novo memorial das vítimas na estação de comboios de Atocha. O anterior, de 2007, foi desmantelado há meses, com o acordo das associações de vítimas, após polémicas em torno da falta de manutenção ou a localização.

Sobre "o legado na atualidade" do 11-M, Javier Sampedro refere o do "debate público espanhol repleto de mentiras".

"A mentira banalizou-se como moeda eleitoral e, sobretudo, uma mentira que leva de modo explícito à acusação de terrorista e golpista, que é o que se faz agora, por exemplo, de modo explícito, contra o independentismo catalão, acusado das duas coisas, o que é, obviamente, um exagero", afirmou.

Trata-se, segundo o investigador, de "criminalizar" o adversário político, excluindo-o da "esfera de debate e de intervenção política de que uma sociedade precisa para um processo de recuperação e de integração".

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