EUA sozinhos na interpretação de que resolução sobre Gaza é "não vinculativa"

Os Estados Unidos estão sozinhos na interpretação de que não é vinculativa a recente resolução aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU a exigir um "cessar-fogo imediato" em Gaza, segundo vários diplomatas e especialistas hoje citados pela imprensa internacional.

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© Getty Images

Lusa
26/03/2024 21:25 ‧ 26/03/2024 por Lusa

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Israel

Os Estados Unidos da América (EUA) -- o único país a abster-se na votação de segunda-feira - foi alvo de duras críticas após considerar a resolução adotada pelo Conselho de Segurança da ONU "não vinculativa", uma situação que causou perplexidade junto do meio diplomático.

Questionado hoje sobre a posição norte-americana, o porta-voz do secretariado-geral da ONU, Farhan Haq, afirmou que as resoluções do Conselho devem ser lidas de acordo com o artigo 25.º da Carta da ONU, que diz: "os membros das Nações Unidas concordam em aceitar e executar as decisões do Conselho de Segurança".

No entanto, o porta-voz recusou-se a ir mais longe na sua interpretação da palavra "vinculativo".

Esta interpretação de Washington em relação à resolução, explorada pela primeira vez pela embaixadora dos EUA junto da ONU, Linda Thomas-Greenfield, logo após a votação de segunda-feira do Conselho de Segurança, foi posteriormente acolhida por vários altos funcionários do Governo liderado pelo Presidente Joe Biden.

Hoje, numa nova reunião do Conselho de Segurança dedicada à questão palestiniana, a Rússia e a China aproveitaram a ocasião para criticar duramente a leitura que Washington quer fazer das resoluções da ONU.

O vice-embaixador da China, Geng Shuang, expressou a sua surpresa com a interpretação norte-americana e disse ao Conselho: "Todas as resoluções do Conselho são vinculativas, incluindo a 2728 (adotada na segunda-feira). Não há qualquer dúvida. Todos os países que aderem à ONU estão empenhados em implementar estas resoluções. É uma obrigação de acordo com a Carta da ONU".

O embaixador russo, Vasily Nebenzya, questionou se as palavras dos vários responsáveis norte-americanos "significam que os EUA já não se consideram sujeitos às disposições da ONU e estão a encorajar Israel a fazer o mesmo", porque, nesse caso, "já não há qualquer sentido em continuar as discussões" no Conselho de Segurança.

A oposição às declarações norte-americanas não se ficou apenas pela Rússia e China, rivais habituais dos EUA e igualmente, a par de Washington, Paris e Londres, membros permanentes do Conselho de Segurança e com poder de veto.

Também o representante da Serra Leoa, Michael Imran Kanu, declarou que o seu país "quer ser claro e inequívoco: a resolução 2728 é vinculativa para todos os Estados-membros".

E o diplomata argelino, Amar Bendjma, frisou: "A Carta da ONU é clara: as resoluções do Conselho são vinculativas, nem quase, nem em parte, nem talvez".

Sem mencionarem diretamente os EUA, a maioria dos Estados-membros ressaltaram o caráter vinculativo da resolução adotada na segunda-feira e defenderam a sua plena implementação.

Na segunda-feira, o embaixador de Moçambique junto da ONU, Pedro Comissário Afonso, que durante 15 anos foi membro da Comissão de Direito Internacional, um órgão responsável por ajudar a desenvolver e codificar o direito internacional, frisou não haver margens para dúvidas de que as resoluções do Conselho são vinculativas.

"Ao abrigo da Carta da ONU, todas as resolução do Conselho de Segurança da ONU são vinculativas e obrigatórias e todos os Estados-membros estão obrigados a implementar essas resoluções. (...) Eu fui membro da Comissão de Direito Internacional durante 15 anos e sei o que estou a dizer", frisou Comissário Afonso, sendo apoiado por outros diplomatas com formação jurídica.

Nas últimas 24 horas, vários especialistas têm manifestado a sua perplexidade com a posição norte-americana e alertado para as possíveis consequências da mesma, incluindo para a própria ONU.

"Ao considerar uma resolução da ONU não vinculativa -- minando-a e à própria instituição -- a administração de Biden continua a mostrar o seu desprezo pela lei e ordem internacionais. Os EUA tornaram a ONU inútil para proporcionar a Israel total impunidade", avaliou a autora e especialista na História do Médio Oriente Assal Rad, acusando os EUA de usarem a ONU como uma ferramenta da sua própria agenda política.

Para Hannah Birkenkötter, especialista em direito internacional com foco no sistema das Nações Unidas, "não há dúvida de que a resolução é vinculativa para todos os Estados-membros da ONU a partir do Artigo 25.º da Carta da ONU", frisando não ser necessário que a resolução use explicitamente a palavra "decidir" para que uma resolução seja juridicamente vinculativa.

Ibrahim Zabad, codiretor do Programa de Estudos Internacionais da St. Bonaventure University, em Nova Iorque, considerou que a razão pela qual os EUA designaram a resolução como "não vinculativa" é "desviar a atenção da cumplicidade norte-americana no genocídio em curso". 

Até segunda-feira, havia um consenso partilhado por todo o mundo de que as resoluções do Conselho de Segurança são vinculativas - ao contrário das da Assembleia-Geral da ONU-, embora nem sempre sejam cumpridas porque o Conselho não estabelece ferramentas específicas para obrigar um país ao cumprimento.

Exemplo disso é a resolução aprovada no final de dezembro para acelerar a entrada de ajuda humanitária em Gaza e que foi ignorada por Israel, que, em vez de levantar obstáculos a essa ajuda, fez precisamente o oposto - segundo todas as agências da ONU -, sem que isso lhe valesse sanções ou advertências do Conselho. 

A guerra em curso entre Israel e o Hamas foi desencadeada por um ataque sem precedentes do grupo islamita palestiniano em solo israelita, em 07 de outubro, que causou cerca de 1.200 mortos e mais de duas centenas de reféns, segundo as autoridades israelitas.

Em represália, Israel lançou uma ofensiva na Faixa de Gaza que já provocou mais de 32 mil mortos, de acordo com o Hamas, que controla o território desde 2007.

Leia Também: EUA e Alemanha reforçam compromisso de aumentar ajuda humanitária a Gaza

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