O ano de 2023 lançou o mundo "numa descida a um inferno cujos portões foram trancados em 1948", ano da adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, referiu Agnès Callamard no relatório anual sobre o Estado dos Direitos Humanos no Mundo, hoje publicado pela organização não-governamental (ONG).
Para a responsável, e perante os acontecimentos ocorridos nos últimos seis meses no enclave palestiniano, as lições morais e jurídicas do "nunca mais" -- expressão que se refere ao extermínio de mais de seis milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial, conhecido como Holocausto - foram "rasgadas em um milhão de pedaços".
Na sequência dos "crimes horríveis perpetrados pelo [movimento islamita palestiniano] Hamas em 07 de outubro de 2023 -- quando mais de 1.000 pessoas, na sua maioria civis israelitas, foram mortas, milhares feridas e cerca de 245 pessoas feitas reféns ou cativas -- Israel instigou uma campanha de retaliação que se tornou numa campanha de punição coletiva", acusou a secretária-geral da Amnistia Internacional.
"É uma campanha de bombardeamentos deliberados e indiscriminados contra civis e infraestruturas civis, de negação de assistência humanitária e de fome planeada", classificou a representante, lembrando que "até ao final de 2023, 21.600 palestinianos, a maioria civis, tinham sido mortos no incessante bombardeamento de Gaza" e milhares desapareceram.
Além disso, adiantou, "grande parte das infraestruturas civis de Gaza foram destruídas e quase 1,9 milhões de palestinianos foram deslocados internamente e privados de acesso a alimentos, água, abrigo, saneamento e assistência médica adequados".
Segundo a líder da ONG de defesa dos direitos humanos, milhões de pessoas em todo o mundo olham hoje para Gaza como o símbolo "do fracasso moral total" do compromisso de "nunca mais".
Os princípios consagrados na Carta das Nações Unidas, nas Convenções de Genebra, na Convenção sobre o Genocídio e no direito internacional dos direitos humanos "foram desonrados", criticou Agnès Callamard, sublinhando que "isso é claro relativamente às autoridades israelitas".
Mas, a representante frisou que este não é um papel exclusivo de Telavive.
"Os Estados Unidos também desempenharam um papel de liderança, tal como alguns dos líderes da Europa e a União Europeia (UE). O mesmo acontece com aqueles que continuam a enviar armas para Israel, todos os que não conseguem denunciar as violações implacáveis de Israel e aqueles que rejeitam os apelos para um cessar-fogo", denunciou.
Uma conduta que "exemplifica os padrões duplos que a Amnistia Internacional tem denunciado ao longo de muitos anos", mas que, agora, foi mais longe, "pondo em risco toda a ordem baseada nas regras de 1948", disse.
Segundo Agnès Callamard, o cenário surgiu "logo após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia [em fevereiro de 2022], uma violação da Carta das Nações Unidas e um enfraquecimento do Estado de direito internacional".
"Também a China - outro membro permanente do Conselho de Segurança da ONU - agiu contra o direito internacional, ao proteger os militares de Myanmar [antiga Birmânia] e os seus ataques aéreos ilegais e práticas de prisão e tortura, e ao proteger-se do escrutínio internacional pelos crimes contra a humanidade que cometeu e continua a cometer, inclusive contra a minoria uigur", frisou.
Do futuro, a secretária-geral da ONG admitiu ter uma visão sombria, considerando que as perspetivas "são realmente assustadoras".
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