"Está na altura de mudarmos a forma como olhamos para a violação"
A francesa Gisèle Pelicot, violada por dezenas de homens durante dez enquanto era drogada pelo marido, pediu hoje no tribunal que a "sociedade machista" mude a forma como trata o crime de violação.
© Arnold Jerocki/Getty Images
Mundo França
"Está na altura de mudarmos a forma como olhamos para a violação", afirmou Gisèle Pelicot, de 71 anos, repetindo por três vezes que, para si, "este julgamento será o julgamento da cobardia", perante o tribunal penal de Vaucluse, em Avignon, no sul da França.
A principal vítima do caso argumentou que o julgamento do seu agora ex-marido, Dominique Pelicot, e das dezenas de homens acusados de a terem violado continuará a ser o julgamento de uma "sociedade machista e patriarcal que banaliza" as agressões sexuais.
"Desde o início deste julgamento, tenho ouvido muitas coisas, mas é tudo inaudível", continuou a vítima, afirmando que viu "indivíduos a depor negando a violação".
Dominique Pelicot, presente no banco dos réus de cabeça baixa, já admitiu anteriormente ter entregue a mulher, durante dez anos, a desconhecidos que recrutou na Internet, depois de a deixar inconsciente com ansiolíticos.
"Quero dizer a estes homens: em que momento é que a senhora Pelicot vos deu o seu consentimento quando entraram no quarto? Em que momento é que tomam consciência deste corpo inerte?", questionou a septuagenária.
Gisèle Pelicot, que ouviu por parte da defesa que poderia ter sido um plano orquestrado em conjunto com o seu ex-marido, tornou-se um verdadeiro ícone feminista desde o início do processo, a 02 de setembro.
"Poucos [arguidos] assumem a responsabilidade dos seus atos. Eles violaram! Ouço um senhor dizer que "um dedo não é uma violação". Ele deveria interrogar-se a si próprio", defendeu Gisèle.
Interrogada por vários advogados de defesa, Gisèle Pelicot negou mais uma vez ter sido influenciada ou manipulada durante os 50 anos de casamento, em que nunca suspeitou do comportamento de Dominique.
"O Sr. Pelicot tinha muitas fantasias, nem todas as quais eu podia realizar com ele. Como eu não queria ir a um clube de troca de casais, ele pensou que tinha encontrado a solução pondo-me a dormir! Perdi 10 anos da minha vida que nunca irei recuperar. Nunca! Esta cicatriz nunca vai sarar", afirmou.
O último dos 51 arguidos a depor na manhã de terça-feira, Philippe L., de 62 anos, argumentou que estava "às ordens" de Dominique Pelicot, um "demónio", e que pensava estar a participar no cenário de um casal libertino em que a mulher fingia estar a dormir.
Acusado de "violação agravada", enfrenta uma pena de 20 anos de prisão, tal como a maioria dos 51 arguidos do caso Pelicot, com idades compreendidas entre os 26 e os 74 anos, que vivem principalmente na região de Vaucluse. Dez deles regressaram várias vezes a casa da família Pelicot a convite de Dominique.
Poucos acusados pediram desculpas a Gisèle Pelicot, mesmo depois de terem sido confrontados com os vídeos dos seus atos, projetados em tribunal, imagens em que a vítima aparece totalmente inerte.
Descrito como "o maestro" deste caso, Dominique Pelicot, de 71 anos, foi o primeiro a depor, contabilizando cerca de 200 violações no total, metade cometidas por ele próprio.
O septuagenário deverá depor pela última vez hoje à tarde, num processo que já dura há mais de dois meses.
Na segunda-feira, os três filhos do casal Pelicot, David, Florian e Caroline, foram também ouvidos em tribunal, descrevendo-se como "uma família devastada" e pedindo ao pai para dizer a verdade sobre se cometeu algum ato contra a própria filha e e os seus netos.
No caso da filha, os investigadores encontraram ficheiros armazenados no computador de Dominique Pelicot com imagens de Caroline nua, tiradas sem o seu conhecimento, mas a falta de provas concretas impede que seja julgado.
O outro filho do casal, Florian, questiona-se sobre a sua própria filiação com Dominique, querendo fazer um teste de paternidade.
Na quarta-feira, o julgamento entrará então na sua fase final, com o início das alegações finais das partes civis, antes de ser provavelmente suspenso até segunda-feira para permitir ao Ministério Público francês preparar as suas requisições, que se estenderão por três dias.
A defesa será depois ouvida durante um período de três semanas, começando pela advogada de Dominique Pelicot, Béatrice Zavarro.
Os cinco magistrados profissionais do tribunal disporão então de uma semana para deliberar, devendo o veredicto ser proferido, o mais tardar, a 20 de dezembro.
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