À hora do almoço, na Universidade Politécnica de Macau, ouvem-se grupos de estudantes a falar mandarim. Três alunos de doutoramento do interior da China dizem à Lusa que não estariam aqui hoje se o percurso académico fosse feito em cantonês, língua dominante em Macau.
"Seria um desafio, porque não entendo cantonês", complementa Liu Tiantao, da província de Zhejiang, no leste chinês.
Atualmente, 70% (39.080) dos estudantes a frequentarem o ensino superior local vêm do interior da China, apontam dados da Direção dos Serviços de Educação e de Desenvolvimento da Juventude (DSEDJ).
Nos "anos mais recentes", tem chegado também "um número elevado" de professores do outro lado da fronteira, para lecionar nas universidades do território, indica a académica e presidente da Associação do Dialeto Yue (ou cantonês) de Macau, Tong Choi Lan.
E o mesmo acontece no ensino básico e secundário: "Na escola secundária [Hou] Kong, fala-se realmente mandarim, além de que há muitos alunos transfronteiriços [vivem no interior da China e atravessam a fronteira diariamente]. Quando passo pela escola ao meio-dia, ouço as crianças a comunicar em mandarim", conta sobre a instituição de tradição patriótica.
Notando que as autoridades da Educação têm vindo a incentivar as escolas a usarem o mandarim para ensinar a disciplina de chinês desde cerca de 2011, a linguista refere que a maioria acabou por fazê-lo. Algumas, diz, optaram mesmo por adotar o mandarim como língua veicular de ensino.
À Lusa, Chen Yiwen, professora de chinês na secundária de Talentos Anexa à Escola Hou Kong nota que o estabelecimento "utiliza o mandarim como meio de instrução".
Questionada pela Lusa sobre o assunto, a DSEDJ não respondeu quantas escolas lecionam atualmente a disciplina de chinês em mandarim, nem quantos professores do interior da China foram contratados pelos estabelecimentos educativos.
Os únicos dados disponíveis dizem respeito ao ano letivo 2016/2017: 22% das aulas de chinês no ensino primário e 26% no ensino secundário eram dadas em mandarim, declararam as autoridades competentes em 2017, num programa da rádio chinesa da Teledifusão de Macau.
A ideia, referiu nesse mesmo ano a então diretora da Educação, Leong Lai, é que "a taxa possa ser aumentada de forma estável".
A Lei Básica, "mini-constituição" do território, em vigor desde a transferência da administração para a China, em 1999, estabelece o chinês e o português como línguas oficiais, sendo que não é definido qual o chinês.
"As escolas de Macau podem escolher diferentes línguas de ensino, de acordo com as suas características escolares. A DSEDJ não obriga as escolas a utilizar o mandarim como meio de ensino da língua chinesa ou de outras disciplinas", respondeu à Lusa aquela direção.
A opção pelo mandarim no ensino, alerta Tong Choi Lan, pode vir a ter um forte impacto no próprio cantonês. "Se todas as escolas falarem mandarim, o cantonês vai alterar-se numa geração. Isto é do conhecimento geral da sociolinguística", assume.
Com a docência a ser feita em mandarim, os alunos vão "naturalmente pensar em mandarim ou usar palavras comummente usadas em mandarim" quando falam cantonês, diz, referindo que até a gramática é agora adaptada à do mandarim.
Hoje o mandarim - falado por 80% da população chinesa, de acordo com dados do Ministério da Educação chinês - é muito mais ouvido nas ruas de Macau, ao passo que antes da transferência acontecia "muito raramente".
"Podemos encontrar pessoas que falam mandarim em todo o lado, restaurantes, serviços públicos, hotéis, porque os trabalhadores são do interior da China e os turistas também (...). Além disso, metade da população de Macau nasceu aí", acrescenta.
Os últimos censos confirmam a tendência: em 2021, 81% da população em Macau falava cantonês como primeira língua, menos 6,9% do que em 2001. O mandarim representava 4,7% em 2021, e era 1,6%, apenas, 20 anos antes.
"A língua é a base da cultura, a cultura é apresentada através da língua", defende a linguista, para quem "as características de Macau têm-se vindo a esbater".
Tong Choi Lan explica que a ideia original da promoção do mandarim por Pequim era ampliar o entendimento entre os falantes de dialetos no país.
"Talvez alguns dos nossos líderes se tenham esquecido do objetivo", sublinha.
Leia Também: Receitas do jogo em Macau caem 11,3% em novembro