"O desenho inicial do projeto fica agora completamente alterado, com esta dinâmica, com tudo o que foi encontrado aqui", refere Samira Baessa, presidente do Instituto do Património Cultural (IPC) de Cabo Verde, à Lusa, enquanto caminha pelo local das escavações.
O espaço faz parte da primeira parte do projeto global de requalificação da Cidade Velha, com apoio do Banco Mundial, uma obra que prevê percursos pedonais e espaços de restauração ao lado da antiga torre sineira da igreja da Misericórdia, ligando-a às ruínas da catedral, mais acima.
As obras devem arrancar nos próximos meses e a missão arqueológica que decorre até final do mês, juntando o IPC e a Universidade Nova de Lisboa, tem por objetivo antecipar descobertas que possam atrasar a empreitada.
Graças às escavações, a torre sineira deixou de ser o único vestígio à luz do dia pertencente a um espaço monumental edificado no final do século XV e que, ao longo dos séculos, foi abandonado e permanece soterrado.
O trabalho dos arqueólogos acabou por expor um pátio de antigas enfermarias, bem como capelas laterais, onde saltam à vista mosaicos coloridos no rodapé de uma parede, tudo pedaços do antigo complexo da Misericórdia.
"É a ponta do icebergue" dos vestígios "da igreja e, ao lado, do grande complexo do hospital", indica André Teixeira, arqueólogo e investigador da Universidade Nova, enquanto aponta para o solo, inclinado.
"Debaixo de nós está a nave da igreja", refere, acrescentando que todos os sinais permitem concluir "que o edifício está bem preservado".
"Aquilo que sugerimos, como parceiros do IPC, é que [o projeto] seja alterado, no sentido de valorizar" o que já se trouxe à luz do dia e deixando a porta aberta para novas missões arqueológicas revelarem o que ainda está no subsolo.
Os arqueólogos trabalham dentro de uma cidade em que a vida não espera.
Pouco tempo antes da chegada da missão arqueológica, arrancaram, alguns metros ao lado, as obras de um edifício particular, cujas terraplanagens, para assentar fundações, levaram parte dos vestígios que estariam enterrados do ancestral complexo hospitalar.
A construção privada seria apenas mais uma, alinhada com outras, numa malha urbana em crescimento para satisfazer anseios da população, com a qual há que dialogar, aponta a diretora do IPC.
"Neste projeto temos algo extraordinário, inédito na Cidade Velha: pela primeira vez estamos a trabalhar em ruínas com uma perspetiva de valorização que vai além da musealização e a conjuga com as necessidades da comunidade", prevendo espaços de usufruto público.
A ideia é mostrar que os vestígios arqueológicos não são um entrave à prosperidade de quem ali vive, pelo contrário, podem ser uma mais-valia para reter turistas e fazer crescer negócios.
Com cuidado, uma retroescavadora passa por entre os espaços demarcados para escavação, limpando entulho.
"Isto faz-se com os constrangimentos daquilo a que chamamos arqueologia em meio urbano. Não é aquela em que estamos numa localização isolada. Está na cidade e sob a acumulação de séculos de vivências", aponta André Teixeira.
A encosta de resíduos e entulho era como "as traseiras da cidade", descreve, considerando o projeto de requalificação "importante para reintegrar o espaço" na Cidade Velha, enriquecendo percursos e património visitável.
Se as propostas vingarem, será possível passear pelos vestígios da igreja da Misericórdia, erguida num período de grandes investimentos urbanos, a partir de 1556, por iniciativa do bispo Francisco da Cruz -- igreja que cumpriu o papel de catedral, até à sua construção, mais de um século depois, algumas ruas mais acima.
O percurso poderá incluir os restos "de um dos primeiros hospitais estabelecidos na costa atlântica e índica, remontando ao final do século XV", sendo que "as proporções monumentais fazem deste complexo um ponto central na representação política e religiosa da antiga capital", explicou o IPC.
Estudos arqueológicos de 2006, numa parceria com a Universidade Jean Piaget de Cabo Verde e a Universidade de Cambridge, já haviam revelado azulejos hispano-mouriscos do século XVI.
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