O rosto de uma nação que só quer ser um país. E ter paz
Esta é a história de quem cresceu no norte do Iraque, um país que sabe tudo sobre guerra e nada sobre paz. Hawreen Ahmed, atualmente em Portugal, conversou com o Notícias ao Minuto.
© Hawreen Kwestani
Mundo Curdistão
Hawreen Ahmed admite: “Não conhecia Portugal, nem sequer sabia onde ficava no mapa”. Mas o desconhecido não foi razão para não embarcar na aventura de vir estudar para o país. Quando chegou para tirar o doutoramento em engenharia civil, há três anos, a primeira surpresa: “Julgava que os europeus eram todos altos e loiros”, diz, numa conversa com o Notícias ao Minuto. “Afinal, são muito parecidos connosco”.
Hawreen tem 28 anos e vem do Curdistão iraquiano, a zona norte do Iraque. uma nação profundamente marcada pelas guerras que tem travado ao longo da história. “O nosso maior sonho é sermos reconhecidos como país”, desabafa, à medida que nos vai contando por tudo aquilo que viveu desde muito jovem. Primeiro, na guerra contra Saddam Hussein, depois na guerra civil e agora contra o Daesh. “Acho mesmo que nunca vamos ter paz”.
O povo curdo, refira-se, é considerado o maior povo do mundo sem país (cerca de 30 milhões) que se espalha pelo leste da Turquia, norte da Síria e do Iraque e noroeste do Irão.
Aos cinco anos, Hawreen perdeu o pai na guerra contra Saddam e aos sete ela própria escapou da morte “quase certa” quando soldados afetos a Saddam disparam contra todas as janelas de sua casa, “de baixo para cima, para garantir que morríamos todos”. O que salvou Hawreen e toda a família foi uma chamada que receberam a avisar do que se iria passar. “Mal sabiam eles que tínhamos deixado a casa dez minutos antes de chegarem”. Desse episódio marcante, Hawreen tem gravados na memória o susto e o som dos tiros disparados. “Na altura não percebi o que se estava a passar e não sabia por que razão estava toda a gente a chorar”.
Hawreen conta que não teve a melhor infância do mundo, mas reconhece que apesar de tudo, não foi tão má quanto a dos irmãos mais velhos. “Tive de mudar de escola nove vezes, antes de chegar à universidade. A guerra afetou a educação de muitas crianças naquela altura. Muitos deixaram a escola para sempre”, explica. Mas isso não faz de si "caso único". Sabe que a sua história confunde-se com a de milhares de curdos. E deixa cair o desabafo: “O povo curdo já viveu tantos momentos maus, que temos sempre a necessidade de provar a nossa nacionalidade, ideais e sentido de liberdade aos outros países, para que percebam o nosso ponto de vista".
Quando chegou a Portugal, confessa que tinha cuidado com a forma como agia e como falava porque pensava que poderia haver um estereótipo de que os iraquianos são agressivos, por causa da guerra. Mas, passados três anos, sente-se perfeitamente adaptada ao país que considera ser "o mais pacífico que já viu".
O pai – morto numa emboscada
“O meu pai tornou-se ‘peshmarga’ [nome dado aos guerrilheiros que lutam pelo Curdistão] em 1977, até ao dia em que perdeu a vida a lutar pela nossa liberdade”, começa por explicar, recuando no tempo em que o pai, Hassan Kwestani, começou por ser um guerrilheiro, até ao momento em que formou o seu próprio exército, afeto ao partido PUK, liderado na altura por Jalal Telabany.
Nessa fase, recorda a jovem, o pai lutou em muitas guerras contra o “ditador do Iraque”, Sadam Hussein, o que obrigou a deslocar-se permanentemente de cidade para cidade. O estatuto de líder de um exército curdo tornava o pai de Hawreen num alvo a abater e fez com que a fuga permanente se tornasse normal. "A minha mãe nunca o deixou sozinho, mudaram de casa mais de 15 vezes. Sempre que construíam uma casa, os soldados de Saddam bombardeavam-na".
É notório o orgulho que sente pelo pai, visível na forma como fala dos seus feitos: "Foi um dos primeiros ativistas no começo da libertação do Curdistão de 1991”. Foi a partir desse ano, depois da libertação, que o povo Curdistão-iraquiano se tornou livre de Saddam, ganhando autonomia.
No entanto, “depois de nos libertarmos de Saddam Hussein, começou a guerra civil entre dois dos principais partidos políticos – PUK e PDK – e foi nesta altura que perdemos o nosso pai, em 1994”, conta Hawreen, que tinha apenas cinco anos.
“A morte do meu pai foi planeada pelo PDK”, diz-nos, apontando o dedo ao exército do partido afeto a Saddam. “Estavam escondidos, à espera que passassem na estrada. Armaram-lhes uma cilada, dispararam ininterruptamente contra todos os carros, com armas potentes”, descreve, lamentando ainda que aquele partido tenha "aniquilado tanta gente". "Um dos métodos era assaltar as casas, matando famílias inteiras”, específica.
Saddam era o Hitler do Curdistão e o ISIS é novo Saddam do Iraque
Hawreen tem bem presente a quantidade de atrocidades cometidas contra o povo curdo. “Foram tantos crimes que não cabem num artigo só”, frisa. “Saddam foi responsável por ataques químicos onde morreram 5 mil cidadãos curdos, na cidade de Halabaja. Foi responsável pela 'Anfal Campaig' onde, entre 1986 e 1989, matou cerca de 182 mil curdos, queimando-os vivos, famílias inteiras. Saddam era o Hitler dos curdos”.
Isto para além de todos os crimes cometidos diariamente contra o povo curdo, como torturar pessoas na prisão (o que aconteceu a dois dos seus tios); raptar meninas e mulheres; atacar constantemente vilas e cidades com helicópteros e bazucas; esconder milhares de bombas nas povoações, fazendo com que os curdos ficassem sem pernas; colocar bombas nos brinquedos das crianças, deixados de forma aleatória para servir de isco, ficando as crianças sem mãos e com a cara destruída.
Saddam, resume assim, “destruiu cidades inteiras e levou os curdos para terras árabes, na tentativa de lhes apagar a nacionalidade, transformando-os em árabes”. Antes de 1991, explica, nem sequer era permitido falar curdo nas escolas e universidades do norte do Iraque. “E muitos dos estudantes curdos foram mesmo assassinados nas universidades por suspeita de que pudessem ser políticos ativistas”. Hawreen não conhece outo Iraque senão este. "Sempre foi assim, acaba uma guerra, começa outra. O povo iraquiano já viu tanta coisa…Agora, a maior ameaça é o Daesh, o novo Saddam do Curdistão".
"O ISIS não quer espalhar religião, só quer poder, dinheiro e escravas"
Apesar de o norte do Iraque a situação ser relativamente estável, quando comparada com o sul, a verdade é que se trata de uma estabilidade podre, porque é feita às custas de muitas batalhas travadas nas montanhas do Curdistão e à custa da vida de muitos homens que defendem as fronteiras contra o ISIS. O ano passado, conta, um tio ficou severamente ferido quando sofreu um ataque bombista do ISIS. "Um carro desfez-se completamente muito perto dele. Passado um ano, ainda continua a ser tratado no hospital, tem metais e ossos dos colegas dentro do corpo".
Caso os ‘peshmarga' não estivessem a proteger as fronteiras, Hawreen acredita que já teriam tomado o território. "Tenho a certeza de que não teriam qualquer misericórdia para com o povo curdo, apesar da religião da maioria dos curdos ser muçulmano-sunita tal como os elementos do ISIS". Hawreen afasta completamente a religião desta equação. "Vão querer matar-nos na mesma. O norte do Iraque tem petróleo, tal como o sul, e é isso que lhes interessa". Daquilo que Hawreen pode perceber, "o ISIS não quer espalhar a religião, o que eles querem é poder, dinheiro e mulheres escravas".
Na sua opinião, o crescimento do ISIS, conhecido também por Autoproclamado Estado Islâmico ou Daesh, deveu-se em parte ao facto de o povo iraquiano ter ficado devastado depois da invasão dos EUA. "Não se consegue reprogramar a cabeça de alguém que conhece a guerra e que perdeu tudo, família, emprego e o próprio futuro", analisa a jovem que vê no Iraque pós Saddam uma combinação explosiva: desemprego, espírito de vingança e muitas armas à disposição.
Relativamente à crise de refugiados, que se intensificou já com Hawreen em Portugal, considera que o futuro dos refugiados na Europa ainda não está claro, no entanto sente-se grata por estarem a ser acolhidos na Europa, sobretudo na Alemanha, e espera que outros países do mundo "tirem os óculos escuros e que olhem para a Síria e para o Iraque com mais simpatia". Hawreen está convencida de que conseguirão resolver o problema se quiserem. No entanto, observa que o "Iraque se transformou num prato de onde alguns países comem, tudo o que lhes importa é o petróleo".
Hawreen confessa também que o distanciamento do país lhe permitiu perceber melhor a realidade do Iraque e como o país está atrasado. "Sinto isso na pele todos os dias". E, se no início desta jornada, os planos de Hawreen passavam por voltar para o Curdistão e começar a dar aulas numa universidade, agora já não é tanto assim. Desde que está em Portugal a situação no Iraque agravou-se de tal forma que se sente hesitante quanto ao regresso. “Mas, em todo o caso, continuo a querer voltar para o sítio onde cresci”, termina.
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