Numa altura em que Jacob Zuma está envolto em polémica por causa de uma série de escândalos de corrupção e pela queda histórica do seu partido nas eleições municipais de agosto, o que lhe tem valido críticas mesmo no interior do seu partido, o Presidente protagoniza no sábado uma cerimónia em que as autoridades esperam mais de 5.000 participantes.
Embora o apartheid já tivesse terminado de facto dois anos antes, com a realização das primeiras eleições multirraciais e democráticas que elegeram o Congresso Nacional Africano (ANC) de Nelson Mandela, a assinatura da Constituição foi descrita pelo próprio Madiba como marcando o encerramento de um capítulo de exclusão e a reafirmação da determinação dos sul-africanos em construir uma sociedade de que se todos se orgulhassem.
Numa análise da evolução da África do Sul nos últimos 20 anos, dois investigadores contactados pela Lusa destacaram a atual situação de crise no partido no Governo, com a perda de poder do ANC e o envolvimento do Presidente em escândalos de corrupção.
Em declarações à Lusa, o sociólogo Guilherme da Fonseca-Statter, cuja tese de doutoramento foi sobre a África do Sul, lembrou que constituição de 1996 foi "muito bem feita, mas há fatores mais profundos e a África do Sul está sujeita a isso".
"O ANC vai perdendo algum poder junto das populações, Zuma é tão corrupto como Temer, no Brasil... Tal como aconteceu com o MPLA em Angola, o ANC aburguesou-se: procura o poder pelo poder e o desenvolvimento das populações é algo que pode resultar ou não".
Apesar disso, Statter destacou o facto de o país se ter conseguido "normalizar em termos de racismo".
"O racismo está lá, como está aqui e em toda a parte", mas brancos e negros convivem e discutem no parlamento "com a maior das naturalidades, como em São Bento", disse.
O investigador do Centro de Estudos Africanos do ISCTE-IUL Fernando Jorge Cardoso recordou por seu lado que a Constituição pôs formalmente fim a um período de muitas décadas, "quase um século", em que o país esteve fortemente dividido em linhas raciais e linhas étnicas.
"Mesmo antes da independência da África do Sul, em 1910, a dominação colonial britânica jogou sempre com o 'dividir para reinar'. As divisões étnicas, as separações físicas entre os locais onde uns e outros vivem já existiam antes de 1910 e continuaram a ser o costume e a prática após a independência" e até à instauração do regime do apartheid pelo Partido Nacional boer.
O que este partido fez, em 1948, foi proibir, nomeadamente os casamentos multirraciais e a circulação de negros sem autorização expressa, recordou.
Ou seja, em 1996, quando se aprovou a Constituição, a África do Sul era um país em que, "há muitas gerações, brancos e negros vivem fisicamente em lugares distintos e só se juntam para trabalhar", lembrou.
"Quando apreciamos um país que foi criado neste ambiente, temos de perceber que em 20 anos não se constrói um país multirracial, onde as pessoas aprendem a viver nos mesmos bairros, com raças diferentes, com etnias diferentes, não se consegue fazer isso de um momento para o outro", sublinhou Fernando Jorge Cardoso.
Para o investigador, "nenhum Governo, independentemente da apreciação que se faça dos governos liderados pelo ANC, conseguiria ultrapassar" as divisões raciais no país.
"Provavelmente, a ser ultrapassado, vamos ter de esperar outros 20 anos, ou provavelmente mais do que isso", alertou.
Destacou no entanto aspetos positivos no desenvolvimento da África do Sul desde as eleições de 1994, como o "aumento exponencial da taxa de escolarização entre os negros, o aumento dos cuidados de saúde básicos para todos e a liberdade de circulação".
O investigador ressalvou que, 12 anos depois da assinatura da Constituição, em 2008, o país, como o resto do mundo, deparou-se com "uma crise económica internacional complicadíssima que afeta bastante a África do Sul", que era desde o final do século XIX uma das principais praças financeiras mundiais.
Finalmente, a situação do país deteriorou-se ainda mais após a eleição do atual presidente, Jacob Zuma, em 2009, e em particular após a sua reeleição, defendeu Fernando Jorge Cardoso.
Neste momento, afirmou, o ANC perde peso eleitoral e influência e, embora mantenha a maioria absolta, o partido vive cada vez mais uma situação de oposição interna.
"Há uma conjuntura económica bastante desfavorável e uma estrutura de sociedade completamente complicada. O Presidente tem a figura dele completamente gasta (...) Estou convencido de que num prazo relativamente curto Jacob Zuma será substituído", afirmou.